Aether Candelions: Divina Saga
Webnovel | Gênero: Fantasia | Classificação +14.
Contém violência, palavras de baixo calão, assassinato.
Antes do começo
Diziam que a Deusa da Guerra, Scaliya, descera imponente dos céus, atraída por uma singela oração que lhe tocara os ouvidos. Vestia ouro divino. Empunhava duas espadas reluzentes. Trazia nas costas uma lança de duas pontas. E, sobre a cabeça, brilhava uma coroa de sete anéis flutuantes. Suas asas rasgavam os céus como lâminas forjadas de luz.
Ela olhou para os humanos subjugados e… chorou.
A visão da escravidão dilacerara-lhe o coração, e exigira que o mal personificado se apresentasse diante dela.
Daraj-Vzan, uma criatura perversa e demoníaca que condenara os humanos daquela terra amaldiçoada — emergira das sombras à frente de seu exército infinito.
Scaliya ergueu sua voz firme e celestial:
— Criatura das trevas… por que persegue essas almas atormentadas?
Daraj-Vzan balançou um de seus muitos braços rugosos, em escárnio.
— Tolice sua, Deusa da Guerra. Não há almas inocentes aqui. Apenas pecadores pagando por seus crimes. Volte para os céus, insolente. Esta terra já me pertence.
Scaliya, porém, não respondeu. Apenas ergueu as espadas — a da esquerda, com o fulgor do sol; a da direita, com o brilho do oceano.
Ascendeu no céu sombrio, espalhando luz por cada canto daquela terra condenada. O exército avançou contra ela, mas nenhuma das forças malignas conseguiu tocá-la.
Daraj-Vzan ergueu sua lâmina feroz e lançou-se sobre a Deusa, dando início a um combate que, aos olhos dos humanos, pareceu eterno.
Cada golpe reverberava como um trovão, fazendo a terra estremecer.
Por fim, Scaliya baniu todos os demônios às profundezas do mundo com sua força incomparável. Apenas Daraj-Vzan permanecera, contido sob os pés descalços da Deusa. Ela empunhou a lança fulgente e encostou-a em seu rosto. A pele rugosa queimou, repelindo o toque de tamanha pureza.
— Por quê? — sussurrou Daraj, com o sangue escorrendo dos lábios. — Por que luta por esses humanos?
A Deusa, então, percorreu com os olhos a multidão e encontrou, entre os rostos aterrorizados, o autor da oração.
Era um jovem esguio, marcado por feridas e pela fraqueza. Seu sorriso suave iluminava-lhe o semblante — uma luz tão pura que fez o rei demônio estremecer de repulsa.
— Não posso ignorar um coração obstinado.
Daraj gritou em fúria, enquanto a luz da Deusa crescia, envolvendo-a num resplendor sublime que expulsava todas as trevas.
Capítulo 1 - Pegos na Estrada Nº6
Atrás da lua, onde a luz nasce
e a escuridão se desfaz.
Aquela tarde deveria ter sido como qualquer outra para Damian Montgomery. Em frente ao aeroporto, esperava por alguém. Sua postura era despreocupada. Usava um boné puído, óculos escuros protegiam-no do sol da tarde. Escrevia distraidamente num caderninho de capa gasta.
Antes de chegar ali, estivera reunido com os amigos, discutindo o tema do próximo episódio de sua série no FilmTube.
— Acho que deveríamos falar sobre prédios abandonados — sugeriu Tommy, subindo o óculos no rosto.
Os quatro estavam juntos: Tommy, Ben, Mia e Damian. Amigos há três anos, eram conhecidos na internet como os criadores do canal de contos de terror Midnight Inside com três milhões de inscritos.
— Prédios abandonados? Isso ainda é assustador? — Mia virou-se no chão para encará-lo. Estava sentada sobre as pernas.
— Está perguntando para mim?
— Você é o escritor.
— E como escritor da série, estou aberto as sugestões — respondeu Damian, largando o caderno e o lápis. — Mas estou num bloqueio criativo. Nada vem.
Ben, Tommy e Mia se entreolharam, em silêncio.
O olhar de Damian caiu sobre o mural de ideias. Criaturas horrendas, lendas antigas, olhos vermelhos. Uma figura específica o encarava de volta.
— Certo! — gritou Ben, batendo palmas e assustando os demais. — Temos tempo para isso depois. Vamos comer algo, hein?
Damian suspirou.
— Não posso. Tenho que buscar meu irmão no aeroporto.
— Elio volta hoje? Por que não nos avisou? — Mia pareceu surpresa.
— Ele só vai passar o fim de semana.
Os amigos apenas assentiram.
— Vejo vocês mais tarde.
Do lado de fora do aeroporto, preferira esperar ao invés de enfrentar a multidão. O relógio digital marcava a hora exata da chegada de Elio.
Continuava a rabiscar frases soltas. Personagens, criaturas, ideias que não levavam a lugar algum. Lembrava de um comentário ácido: “As histórias estão ficando repetitivas.”
— Repetitivas, hein? Que tal uma criatura meio humana, meio demônio, que aparece no meio do nada e arrasta você pro inferno? Isso é previsível, Stickman181? — murmurou sozinho.
Foi quando avistou uma cabeça familiar. Guardou o caderno no bolso do casaco.
Elio vinha caminhando tranquilamente, com o rosto sempre brilhante e o cabelo dourado sob a luz. Usava uma jaqueta jeans desbotada, fora de época, e carregava uma única mala de mão.
Será que tem mesmo tudo aí dentro? Damian pensou, irônico.
Quando Elio chegou, envolveu o irmão num abraço apertado. Damian fez uma careta.
— Sentiu tanto assim minha falta? As pessoas estão olhando.
— Você está tão alto, Dante — disse Elio, chamando-o pelo velho apelido. Examinou-o de cima a baixo. — E esses músculos? Desde quando?
— Vamos logo — resmungou Damian. — Vamos pegar um táxi.
Andaram alguns metros. Elio ergueu o braço para um veículo que se aproximava.
— Estou com fome. Por que não paramos para tomar um café? Você deve conhecer as melhores cafeterias daqui.
Damian já sacava o celular quando o ouviu. Prestes a negar, foi interrompido:
— Dante… seu irmão está faminto. Vamos parar rapidinho, hein?
Ele suspirou.
— Tem bastante comida em casa. Não é melhor chegar logo?
— Tudo bem — cedeu Elio, vendo o táxi encostar. — Você cozinha para mim, então?
Damian piscou, resignado. Entrou no carro após o irmão e informou ao taxista o endereço de um café próximo.
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A imagem de Elio devorando um sanduíche de ovo com entusiasmo intrigou Damian. Pensou em perguntar se não havia algo parecido na Inglaterra, mas desistiu. Não queria conversar. Queria apenas pensar.
— Não vai comer nada? — perguntou Elio, com a boca cheia.
— Até queria, mas não consigo — respondeu Damian, os olhos presos no caderno. Refletia se o demônio da história deveria ter a pele rugosa e esverdeada. O silêncio o ajudava a imaginar.
Elio limpou a boca com um guardanapo.
— Como anda seu trabalho na internet?
— Ah... bem. Eu acho — respondeu sem entusiasmo. — Consigo me sustentar.
— Você virou um adulto decente. Os avós fizeram um bom trabalho.
Damian franziu o cenho, desviando os olhos do caderno.
— Por que falou deles assim, do nada?
— E por que não? Vamos visitá-los. Sinto falta deles.
— É um dia inteiro de viagem. Eles estão bem. Sempre mando dinheiro. — Ele balançou a cabeça. — Terminou?
— Sim. — Elio tomou o restante da bebida num gole só e se levantou. — Vou pagar.
Damian pensou em dividir a conta, mas Elio já se afastava. Passou a mão pelo cabelo e voltou os olhos ao caderno. Leu o que havia escrito:
“O protagonista leva uma vida comum até ser atacado por uma criatura de outro mundo — metade homem, metade demônio. Mas por quê? O que ele fez de errado?”
Suspirou, sem ideias. Era fim de tarde. A cafeteria repousava em uma calmaria morna, e uma música ambiente preenchia os espaços entre as vozes. Queria ir para casa, talvez ler um pouco. Talvez esquecer que tinha um bloqueio criativo.
Um toque no ombro o arrancou do devaneio.
— Afinal, o que tem nesse caderno de tão bom? — Elio guardava a carteira no bolso da calça, o tom leve e provocador.
— Mesmo que eu explicasse, você não entenderia — disse Damian, escondendo o caderno no bolso.
— Está duvidando da minha inteligência? Isso é maldade com seu irmão recém-chegado.
— Fui bondoso demais te buscando no aeroporto.
— Mas desde quando ficou tão amargo?
Caminharam lado a lado até a saída. Damian revirava os olhos por trás das lentes.
— Depois de tanto tempo fora, você acha que tem direito de opinar sobre quem me tornei?
— Dante... — tentou alertá-lo Elio, mas era tarde.
— Urgh!
Damian recuou, surpreso. Seu casaco fora atingido por um líquido espesso e roxo, que escorria com lentidão pelo algodão. O cheiro era forte, enjoativo. À sua frente, uma garçonete segurava uma bandeja vazia com uma mão e, com a outra, prendia o braço de uma criança inquieta.
— Você está bem? — perguntou Elio, alarmado.
— Meu caderno! — Damian puxou o objeto encharcado do bolso. O papel já se desfazia nas bordas. Os traços de tinta escorriam, irreconhecíveis.
— Eu não estava falando com você — corrigiu Elio, franzindo a testa.
Damian lançou-lhe um olhar cortante, mas conteve-se. A garçonete abaixou-se, acalmando a criança, e logo uma mulher surgiu, pedindo desculpas pelo descuido do filho.
Assim que se afastaram, a garçonete se voltou para os irmãos. O rosto corado, o olhar tenso.
— Agora posso pedir desculpas apropriadamente — disse com voz firme e contida. — Tentei segurar a criança para que não caísse, mas perdi o equilíbrio com a bandeja. Foi um erro. Posso oferecer algo para compensar?
— Não tem problema... — começou Elio.
— Oferecer algo? — cortou Damian, indignado. — Você destruiu o único lugar onde tudo fazia sentido.
A garçonete mordeu o lábio, surpresa, mas não respondeu de imediato.
— Sinto muito. De verdade.
Damian caminhou até a lixeira próxima. Parou diante dela. Por um segundo, hesitou. Depois, atirou o caderno com força, como se quisesse afastar não apenas as páginas molhadas, mas também a frustração que o consumia.
— Dante... — sussurrou Elio.
— Já foi. Vamos embora.
A garçonete permaneceu imóvel, o semblante culpado.
— Não foi minha intenção... — murmurou, erguendo o rosto. Trocou um olhar breve com Elio. Algo naquele olhar o deixou desconcertado. Havia algo estranho ali — não tristeza, não culpa. Algo que ele não soube nomear.
— Desculpe pelo meu irmão — disse Elio, vacilante. — Ele não costuma ser assim. Acho.
A garçonete nada disse. Apenas o encarou, o olhar fixo, como se gravasse algo importante.
Elio desviou o rosto, desconcertado, e seguiu Damian para fora da cafeteria. Mas sentiu, nas costas, o peso silencioso daquele olhar — e teve a impressão de que aquilo, de alguma forma, ainda não havia terminado.
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No banco de trás do táxi, os dois irmãos permaneceram calados.
O cheiro da bebida azedava o ar no carro, e Damian franziu o nariz antes de abrir o vidro, buscando algum alívio. O vento que entrou não dissipou o desconforto.
Elio lançou um olhar duro na direção do garoto, mas foi como jogar pedras em um lago profundo: sem nenhuma reação à superfície. Damian mantinha-se alheio, como se o mundo ao redor não lhe dissesse respeito.
O irmão mais velho apertou os punhos. Observava o perfil fechado de Damian e sentia uma pergunta roendo por dentro:
A culpa é minha?
Damian tinha olhos afiados e um jeito defensivo que parecia ter se erguido como uma parede de concreto. Quando crianças, era diferente. Havia doçura nele — e Elio invejava isso. Lembrava-se de se agarrar àquela bondade nos dias escuros, como quem se apega a uma vela em um túnel.
Só aquilo o fazia querer voltar.
Mas agora... Damian não era mais uma luz. Era uma sombra difícil de alcançar.
— Por que agiu daquela maneira? — perguntou Elio, tentando parecer neutro, mas o incômodo escapava em seus ombros tensos. — Dante, estou falando com você.
— Que maneira? — Damian sequer desviou os olhos da estrada. — Acredite, eu estava me controlando.
— Jogou o caderno fora! Não percebeu que a garçonete segurou a criança para evitar algo pior?
— Ah... então é com ela que está preocupado? — Ele finalmente virou o rosto, expressão emburrada. — Ou é com o meu caderno? Porque, até onde sei, eu fui o único que perdeu alguma coisa.
Elio arqueou as sobrancelhas.
— Como é?
— Você sabe, não sabe? — Damian encarou o irmão, sem filtros. — Trabalho online. Aquele caderno tinha tudo. Ideias, esboços, metas. Não foi só papel. Foi trabalho. E você agiu como se fosse um show.
— Jogou fora para fazer cena — rebateu Elio. — Poderia ter salvo, sim. Está agindo como um...
Damian o interrompeu com um olhar duro.
— Estou agindo como o quê, Elio? Você quer falar disso agora, depois de desaparecer por anos? Volta como se nada tivesse acontecido, como se ainda tivesse algum direito de opinar sobre quem eu me tornei?
O silêncio caiu por um segundo. Elio olhou para os próprios sapatos, tentando conter algo que ameaçava escapar. Damian murmurou um palavrão, tirou os óculos escuros e os enfiou no bolso do casaco. Cobriu os olhos com uma das mãos.
— Não vamos insistir nisso. Você nem conhece aquela garota, está tomando as dores dela por quê? Preciso de um tempo para trabalhar. A gente pode jantar depois.
Elio ignorou. A voz saiu baixa, mas carregada:
— A culpa é minha.
Damian o olhou de lado, confuso.
— Achei que estava fazendo o certo. Achei que, indo embora, te deixaria num caminho melhor. Mas... não devia ter te deixado aqui.
— Do que você está falando? — Damian cerrou os punhos, tentando conter o tremor. — Nunca me senti abandonado. Nunca pedi sua ajuda!
O táxi desacelerou numa curva. O rádio preenchia o silêncio com uma música suave demais para o momento. Do lado de fora, o céu desabava: nuvens carregadas se aglomeravam, e uma névoa densa cobria a Estrada Nº6 como um véu maldito.
O motorista, um senhor de idade, limpou os óculos com um pano tremido.
— Que diabos é aquilo?
Damian olhava pela janela quando sentiu o pressentimento. O tipo de dia em que tudo desmorona — e agora a estrada também parecia se entregar ao caos.
Elio estava ao seu lado, calado, e aquilo era insuportável. Ele ia falar. Ia falar algo. Mas...
— Dante, a gente precisa conversar... — começou Elio.
Não houve resposta.
Um grito do motorista cortou o ar:
— Tem alguma coisa na estrada!
O para-brisa se estilhaçou com o impacto. O carro sacudiu, perdeu o controle, bateu contra outro e girou no ar. Pneus gritaram. Buzinas estouraram ao redor. Os corpos foram lançados, presos pelos cintos. Por fim, o táxi capotou e foi parar de lado no meio-fio, feito um brinquedo esmagado.
Silêncio.
Depois, só o som de vidro estalando, e o rádio ainda tocando, como se nada tivesse acontecido.
Capítulo 2 - A longa noite começa
Sair de um carro capotado não seria nada fácil. Foi o que pensou ao abrir os olhos, percebendo o que havia acontecido — e que, ainda assim, estava vivo.
Conseguiu avistar o irmão mais velho que, com esforço, retirou o taxista desacordado do banco da frente. Elio estava do lado de fora, ferido. Um rastro de sangue escorria pelo pescoço dele.
Droga... eu também? pensou, sentindo a cabeça latejar.
— Dante! Você está bem? Dante! — A cabeça de Elio surgiu na janela.
— Não precisa gritar, estou bem — respondeu Damian, tentando se virar no banco de trás. Seu corpo longo parecia ainda mais inadequado naquela posição. Mesmo de cinto, agora sabia como era ser jogado dentro de um liquidificador.
— Acha que consegue sair? — perguntou Elio, aflito demais.
— Não é como se eu quisesse ficar aqui por mais tempo. Está bem desconfortável.
— Vem. Me dá a sua mão.
Damian obedeceu e foi puxado para fora do veículo. Agradeceu mentalmente por os vidros estarem abertos.
Ficou de pé com a ajuda do irmão. Ao ver o motorista desmaiado e o caos ao redor, sentiu-se exaurido. Os ouvidos apitavam — uma tortura interna.
— O que foi que aconteceu aqui? — perguntou alto, esfregando os olhos. — Tenho quase certeza de que algo atingiu o capô antes de capotarmos.
As pessoas começaram a se dispersar. Damian estranhou o silêncio súbito de Elio, mas logo se distraiu com a confusão crescente.
Não apenas os envolvidos no acidente, mas outros também abandonavam seus carros, como se fugissem de algo. A maioria corria, assustada. Alguns tentaram filmar com os celulares, mas logo desistiram.
— O que está vindo ali? — Ignorando a dor, Damian deu um passo à frente.
— Damian! — A voz de Elio irrompeu como um trovão nos ouvidos dele. O irmão o segurou pelos ombros, firme. — Precisa prestar atenção no que vou dizer agora!
— Elio, tem alguma coisa vindo dali. Não sente essa vibração no chão?
— Dante, escuta! — Elio gritou de novo e sacudiu seu corpo com força exagerada. Damian o encarou.
O chão tremeu. Um impacto vibrou no ar. O garoto sentiu como se um terremoto lhe atravessasse os ossos. Elio ainda o segurava, calado — os olhos fixos em algo que Damian não via.
Logo entendeu o motivo.
Primeiro, achara que aquela tarde seria comum. Depois, que o acidente o deixara desnorteado. Agora, os próprios olhos o traíam.
— O que é aquilo...?
Uma criatura se aproximava. Repulsiva. Como saída de um episódio de Midnight Inside.
Não era humana — embora quase parecesse. Alto, com a pele escamosa, lembrava um réptil musculoso. A face era grotesca. Estava descalço, com unhas longas e sujas tanto nos pés quanto nas mãos. Os olhos, amarelos. O cabelo verde e ralo deixava o crânio quase exposto. Da cabeça aos pés, parecia surrado, sujo, em decomposição.
Se Damian conseguisse falar, talvez elogiaria a caracterização daquele cosplay. Afinal, era só um cosplay... certo? A arma monstruosa era falsa... certo? Toda aquela atmosfera distorcida era só impressão... certo?
— Elio, está vendo o que estou vendo? ESTÁ?! — A própria voz o surpreendeu.
— Gostou da surpresa? — disse o ser, com uma voz cínica, quase zombeteira.
Ele falava. E se aproximava. Damian quis responder. Mas a garganta o impediu.
Elio não disse nada. Apenas agiu. O empurrou com uma força que o lançou metros adiante. Damian ainda jurava ter sentido algo ser colocado em seu bolso. Raspou no asfalto, rolou pela grama. Abriu os olhos.
O mundo girava. Mas a cena adiante o obrigou a focar.
Elio continuava ali. Diante do monstro.
O coração de Damian disparou, pequeno e assustado.
O que está acontecendo? Isso é um pesadelo? Um sonho? Arregalou os olhos.
O ser retirou uma longa corrente do próprio cinto. O metal caiu no chão e, como se tivesse vontade própria, voou até o pescoço de Elio, enroscando-se nele.
Uma luz intensa irrompeu. Elio brilhou. E desapareceu.
Antes disso, estendeu o braço em direção ao irmão.
Fuja — ele dissera.
Em resposta, Damian gritou.
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Mesmo que quisesse, não conseguiria. Suas pernas haviam perdido toda a vida.
— O que foi que acabou de acontecer? — murmurou, atordoado. — Aquela coisa... evaporou o meu irmão? Elio?! Cadê você?
Damian não compreendia como o irmão desaparecera diante de seus olhos. Queria crer que nada fora real. Que aquilo era apenas uma brincadeira — uma pegadinha, uma transmissão, talvez um trote televisivo para o FilmTube.
Elio surgiria em instantes, rindo e dizendo: Peguei você. Devia ter visto a sua cara.
A corrente voltou sozinha ao cinto do ser, como um cão obediente. Em seguida, o monstro ergueu uma nova arma. Um machado imenso, curvo como a meia-lua, com uma lâmina que parecia pulsar. O cabo de madeira era sulcado por espinhos, como se a própria arma desejasse ferir quem a empunhasse.
Os olhos da criatura encontraram os de Damian. E com isso, a temperatura do seu corpo despencou. Não venha, pensou.
Nada o protegeria. Nenhum desvio. Nenhum milagre. O ser avançava — e em cada passo, Damian sentia a morte se aproximar.
Que forma patética de morrer. Sempre imaginara que seria atropelado.
Pensou em Elio. Quase não ousava acreditar que o irmão estava morto. Seus olhos queimavam.
— Parado aí!
A voz rompeu o transe. Damian moveu a cabeça devagar. O monstro também. Dois policiais aproximavam-se com as armas erguidas.
É claro — qualquer um os veria como heróis. Mas algo, no fundo do garoto, já sabia: eles não teriam chance.
— Solte o objeto no chão e ponha as mãos na cabeça! — ordenou o primeiro.
A criatura não respondeu. Agachou-se lentamente e pousou a arma no chão. Damian mal sentia o corpo, mas sabia que aquilo era apenas encenação. Nada ia terminar bem.
Foi quando reuniu o que restava de suas forças:
— FUJAM! SAIAM DAQUI, ELE V...
Não concluiu.
O machado voou sozinho — um borrão de aço e fúria. A lâmina mergulhou na garganta do primeiro policial, que tombou com os olhos já vazios de vida.
O segundo disparou, mas era tarde. O machado retornou como um bumerangue, traçando o ar até suas costas. Um estalo seco precedeu a queda.
Damian viu tudo. O sangue. A queda. Não havia artifício que sustentasse tamanha crueldade. Sentiu o estômago se revirar. A mente girava em espirais. O mundo ameaçava apagá-lo.
Impiedoso, o ser repulsivo chamou de volta o machado com um estalar de dedos. A arma voou até sua mão, ainda escorrendo sangue. Ele o cheirou com gosto, inspirando profundamente, como se fosse vinho raro.
— Ah... o cheiro desta terra imunda não é tão ruim quanto imaginei. Que pena ter que partir tão cedo. Adoraria sentir mais disso — murmurou para si, rindo com prazer. — É claro, detesto matar sem necessidade. Mas preciso eliminar todo aquele que cruzar meu caminho. Acha isso errado, hein?
Damian engoliu em seco. A garganta ardia. Ainda assim, encontrou coragem para perguntar:
— O que fez com o meu irmão? — A voz vacilou. — O que é você?
A criatura arregalou os olhos com excitação e saltitou no mesmo lugar, como uma criança à beira de um presente.
— Ah, que momento sublime! Sublime! Sublime! Bem diante de mim, o irmãozinho de Elio! Elio, o herói! Elio, o salvador! Aquele que devia proteger a todos... e nem o próprio irmão poderá salvar. — Gargalhou, o rosto distorcido pela euforia. — E melhor ainda... o pobrezinho aqui não sabe de nada. Será que eu mereço um presente desses, hein?
Damian ignorou tudo. Apenas repetia, cada vez mais desesperado:
— O que você fez com o meu irmão?!
— Nunca vai saber — respondeu o monstro, ainda sorrindo.
Um vento morno soprou, desarrumando os cabelos de Damian. Seu boné sumira em algum momento — assim como o celular. Dos arbustos, ouviam-se apenas os grilos. Nenhuma sirene, nenhum carro, nenhuma testemunha. Era um pesadelo de onde não se podia acordar.
Seus amigos... o que pensariam? Acreditariam nele? Ou ririam, dizendo que era uma das suas histórias?
O machado ainda gotejava sangue. E desta vez, a criatura estava perto demais. Não havia mais para onde correr.
Será que devo começar a rezar agora? Ou já é tarde demais?
— Você vai morrer! — bradou a criatura, erguendo o machado sobre a cabeça de Damian. — Vai morrer sem saber de nada!
O garoto fechou os olhos e orou. Breve, seco, desesperado.
Nada aconteceu.
Por um instante, achou que a dor fora tão grande que perdera a consciência. Mas estava errado.
— O quê?!
Não era sua voz. Era a da criatura.
Damian ergueu a cabeça — e entendeu.
Entre ele e o monstro, alguém havia se interposto. O machado não o atingira porque fora impedido.
Uma lança reluzente, de duas pontas curvas e afiadas, cortou o ar e interceptou o machado no último instante.
O som do impacto ecoou seco, como metal estalando os ossos do mundo.
Damian arregalou os olhos. A boca entreaberta, como se ainda buscasse uma explicação. Mas só conseguiu murmurar:
— Você...
Capítulo 3 - A garota diante de mim
A figura à sua frente não o olhou.
— Pode nos dar um momento? — disse ela para a criatura.
Então, girou a lança com precisão ensaiada e desferiu um chute no peito da criatura. O corpo adversário foi lançado para longe, e o vento pareceu estremecer com a queda.
A garota se virou para Damian, que continuava no chão, sentado na grama úmida, respirando como se o ar lhe queimasse por dentro.
— Está bem? — perguntou, ajoelhando-se ao seu lado. Segurava a lança com veemência. Os olhos varriam seu corpo. — Consegue se mover? Está ferido?
Damian piscou, atordoado.
— É você... a garçonete. — As palavras se dissolveram. — Eu... estou enlouquecendo...
A garota franziu o cenho. Damian a encarava como se ela fosse um delírio. A garçonete ainda vestia o uniforme da cafeteria — manchado de terra, os botões tortos. O cabelo preso, desalinhado. E nas mãos, aquela lança impossível.
— Não parece estar muito ferido — murmurou, mais para si. — Cadê o seu irmão?
As pupilas de Damian se agitaram.
— Elio... ele...
— Ele morreu?
— Não! — respondeu de pronto, mas ponderou. — Não sei... fomos atacados por... aquilo. Ele prendeu o Elio numa corrente de luz... e ele sumiu. Ele não pode ter morrido. Eu... eu senti...
Ela manteve o silêncio por um momento. O olhar, agora mais sombrio.
— Aquilo que acabei de chutar está tentando matar você — disse, seca. — E ele não parece do tipo que desiste fácil.
— Mas por quê?! — a voz dele rompeu num tom quase infantil. — Por que ele quer me matar? O que ele fez com o meu irmão?!
Ela hesitou, tentando entender até onde podia ir.
— Você não sabe mesmo? — E ao ver a expressão dele, confirmou o óbvio. — Pela cor dos olhos... Acredito que ele seja um Halvina.
— Um quê?
— Um híbrido. Uma raça antiga. Eles não são como nós. O que restava de humano naquele corpo já morreu há muito tempo.
— E ele... ele veio atrás de mim? Por quê?
A garota olhou para ele como quem encara uma peça fora do tabuleiro.
— Como eu saberia?
Um ruído cortou o campo. O inimigo, de volta. Tão rápido quanto um animal enfurecido. O machado veio rasgando o vento.
Ela se levantou de súbito, firme. O choque foi brutal.
Lança contra lâmina. A garota cambaleou, os pés arrastando pela grama.
— Como ousa?! — rosnou a criatura. — Quem pensa que é, para tirar o meu prazer?!
Ela não respondeu.
Aproveitou a instabilidade dele para girar o corpo e empurrá-lo. O machado afundou na terra. Ele tentou se recompor, mas ela já o esperava.
Uma das pontas da lança subiu rente ao rosto do inimigo, deixando um corte limpo. Sangue grosso e esverdeado escorreu devagar. O monstro tocou o ferimento com os dedos, desacreditado.
A garçonete recuou, assumindo postura defensiva, os olhos negros duros - como se lessem o tempo.
— Que tal agora eu falar um pouco? — disse ela, firme. — Quem é você... e o que veio buscar aqui?
Damian, ainda afastado, observava com espanto. Ela era rápida. Ágil. Cada gesto parecia calculado.
Quem é ela...?
— Não entendo, não entendo, não entendo! — gritou o inimigo, sacudindo a cabeça como um animal encurralado.
A garota estreitou os olhos, estudando seus movimentos.
— Não deveria haver mais ninguém aqui! — continuava o monstro, num crescendo de fúria. — Nenhum deles! NINGUÉM DEVERIA ME IMPEDIR!
Ele a apontou com o machado.
— Foi você que me seguiu?!
— Não se ache tanto — retrucou, seca.
Damian ouviu, apreensivo. Não o provoque mais... por favor... será que ainda havia chance de negociação?
— Você não é um deles, é? — vociferou o inimigo, os olhos arregalados. — Não pode ser! Não veste nada igual! — A voz ganhou um tom histérico. — MAS ENTÃO O QUE É VOCÊ, HEIN?! E POR QUE CARREGA ESSA ARMA?!
Ela girou a lança no ar, com leveza quase insolente.
— Minha arma? — disse, com uma ponta de escárnio. — Ganhei de presente.
Ergueu o queixo, com um meio sorriso e acrescentou:
— Por quê? Nunca ganhou um?
Os olhos da criatura pulsaram, injetados, como se estivessem prestes a saltar das órbitas.
— Maldita... vou... cortar você...
O ar ficou mais pesado. Damian sentiu a urgência subir pelas pernas.
— Precisa sair daqui — disse ela, sem olhar para trás. A voz era baixa, mas firme. — Corre e se esconde!
Damian se levantou, trêmulo, como se saísse de um transe.
— Vou matar... arrancar... todos os seus membros... um por um... — sibilava o híbrido, como se degustasse cada palavra.
— AGORA! Vai!
— Mas... e você?! — Dante berrou, encarando-a imóvel, o coração aos pulos.
No mesmo instante, o olhar do híbrido clareou. Como se enxergasse finalmente. A primeira gota de chuva caiu — depois outra. E Dante ainda não tinha mexido um pé.
— Já sei por onde vou começar... — murmurou o monstro, faminto.
Partiu em disparada na direção de Damian. A garçonete reagiu no mesmo segundo, antecipando o movimento. Avançou como uma flecha, puxando Damian pelo casaco. O golpe do inimigo falhou por um fio.
Damian cambaleou, atordoado demais para reagir. Então, tudo se embaralhou. O híbrido atacava sem trégua, tentando alcançá-lo.
A garota respondia a cada investida, bloqueando, aparando, recuando. Mas ele era persistente — e cruel. Conseguiu agarrar Damian pelo torso, como quem segura um coelho pelas orelhas.
O garoto se debateu com desespero, atrapalhando a manobra da criatura.
— Larga ele! — gritou a garçonete, estocando com precisão.
A lâmina rasgou o braço grotesco, libertando Damian. Ela o puxou para si com firmeza, afastando-se o quanto pôde. A raiva da criatura então transbordou. Os olhos amarelos do híbrido queimavam.
— CHEGA! — bradou, cuspindo a palavra no ar como veneno.
Mas não foi só um grito. Foi um ataque. O solo tremeu. Uma fenda fina se abriu sob seus pés.
Uma rajada obscura explodiu do chão, varrendo os dois como folhas secas. Garçonete e garoto foram arremessados, juntos, contra a vegetação. Sumiram bosque adentro, engolidos pelas sombras e pela trilha de terra revirada.
Capítulo 4 - Machado contra lança
A garçonete se levantou primeiro. Tinha arranhões nos braços, o uniforme rasgado, o cabelo solto. Passou as costas da mão pela boca — sentiu o gosto metálico do sangue. Depois olhou ao redor e encontrou o garoto ainda no chão.
— Ei. Você está bem?
Damian tentou se erguer. Ficou de joelhos. Ofegava. Estava todo amassado, trêmulo.
— Não... não estou. Eu... — engoliu em seco. — Mas que merda! Por que isso está acontecendo comigo? Por que aquela coisa quer me matar?! Meu irmão... você...
A jovem o observou em silêncio, os olhos afiados percorrendo cada detalhe. Depois se aproximou, agachando-se diante dele.
— Antes de tudo, precisa se acalmar. Tenta respirar um pouco.
— Mas...
— Só respira — repetiu com firmeza. — Olha ao redor. O que está acontecendo agora?
Damian hesitou. Ela então apontou com o queixo para o pescoço dele. Mesmo com dificuldade, o garoto viu a marca. Era uma mão. Impressa a fogo na pele.
— O que... o que é isso?
— Significa que ele marcou você. Não importa onde vá, ele vai te encontrar. Tsk... ele precisa morrer. — Falou como se dissesse que o tempo ia mudar. Damian congelou. — Isso não teria acontecido se você tivesse corrido quando eu disse.
— E o que queria que eu fizesse?! Eu nem consigo pensar direito.
— Pois trate de começar. Sua vida depende disso. Ficar no chão se lamentando não ajudou ninguém. — A voz dela cortou seco, mas logo suavizou. — Por enquanto, calma. Ele não vai matar você. Não vou deixar.
Damian a fitou. O medo ainda em brasa.
— Vai enfrentar ele... sozinha? Aquele monstro matou dois homens agora há pouco. Um machado atravessou os dois como... como papel. Eles nem tiveram chance...
— Eu vi. — O rosto dela endureceu. Mas havia dor no fundo. — Posso enfrentá-lo. Só estou em desvantagem, mas é algo que consigo reverter em pouco tempo.
一 Garçonete, está se ouvindo? — Damian indagou, incrédulo.
A garota, por fim, levantou-se com um brilho esperançoso no olhar.
Os dois ouviram a voz do híbrido aproximando-se de onde estavam. A chuva, que antes apenas ameaçava cair, agora desabava com força.
一 Há uma coisa que sei sobre os Halvinas — os seres híbridos. Precisam de tempo para se regenerar. É trabalhoso matá-los, mas não é impossível. Fique atrás de mim, certo? Tente permanecer fora da visão dele.
一 Isso não vai funcionar. Nós vamos morrer. — Damian moveu os lábios, desesperado.
O híbrido vinha cantarolando por entre as árvores. A garçonete retirou o colete do uniforme e o jogou no chão encharcado.
一 Esse é seu jeito de torcer por mim?
一 E há algo que eu possa fazer?
一 Apenas espere. Enxergue o momento e ache uma abertura. Preciso pegá-lo desprevenido.
Damian recuou, usando a penumbra como esconderijo. Não sabia dizer se a chuva ajudava ou atrapalhava.
Observou quando a garota adaptou sua única lança, segurando-a agora com ambas as mãos.
Ela a partiu ao meio?
一 Não adianta tentar escondê-lo de mim! Sei muito bem onde ele está! — disse o híbrido, sua voz ecoando entre as árvores e se cravando na mente de Damian como uma lâmina.
一 Não estou tentando escondê-lo. Só quero que ele evite olhar para você. Sua aparência é assustadora.
一 Quem você pensa que é?!
A provocação surtiu efeito. A criatura rompeu as sombras em um ataque direto.
一 Não vai querer saber — disse firme, aguardando o inimigo que avançava.
O som das duas lâminas se chocando irritou os tímpanos de Damian. O híbrido atacava com fúria descontrolada, sem técnica nem direção. A garota, por sua vez, mais aceitava os golpes do que os evitava. A lança, agora dividida em duas, mostrava-se muito mais eficiente contra o machado do que antes.
Dante, ainda escondido entre as árvores, observava com espanto. Os movimentos da garçonete o impressionavam. Sustentava toda a pressão do híbrido, que, apesar de claramente mais forte, parecia ser contido por ela.
Mas havia algo estranho — algo fora do comum. Seu modo de se mover, a confiança silenciosa que exalava... tudo pendia para o lado da garota.
Ainda assim, o inimigo tinha um instinto assassino, cruel, pronto para usar qualquer artifício para vencer.
Isso era preocupante. Damian temia mais por ela do que por si próprio. Afinal, era ela quem o defendia, certo? O que seria dele, se algo acontecesse com a garçonete?
Damian mal piscou, e seus pensamentos foram rasgados pela realidade. O machado atravessou o torso da garota. O golpe a desequilibrou — por um instante, ela se tornou vulnerável. O híbrido não hesitou: a acertou novamente.
A garota tentou aparar o ataque com uma das lanças, mas ainda assim recebeu um chute violento no estômago.
Damian apertou o tronco da árvore, tomado pela cena. Droga... e agora? O híbrido avançava, enquanto ela caía de joelhos no chão molhado.
Mas não foi o bastante para derrubá-la por completo. Mesmo ajoelhada, mesmo entre a lama e a chuva, ainda conseguiu segurar as machadas dele, cruzando as lâminas para contê-lo.
Ela arfava. A respiração parecia prestes a falhar — mas não falhou. Damian pensou que, se a garçonete tivesse algum plano, aquele seria o momento de executá-lo. Ou tudo estaria perdido.
Apenas espere, ele lembrou das palavras dela. Enxergue o momento.
Mas... o que eu faço? Se lutasse, provavelmente morreria. Nada o assegurava. A única certeza era: ele só tinha aquela garota como ajuda.
E, ao vê-la ser empurrada contra o chão, algo despertou. Se algo acontecesse com ela — e parecia prestes a acontecer — não haveria mais saída.
Damian saiu da escuridão, rugindo contra o vento.
一 É a mim que você quer, não é?! O QUE ESTÁ ESPERANDO?!
A garçonete arregalou os olhos. O híbrido, por sua vez, pareceu gostar do desafio.
一 Só um segundo, já chego em você.
— Esper... — a garota vacilou.
Desabou inconsciente sobre a lama. O híbrido não usou o machado. Foi o punho fechado que caiu sobre ela, brutal e desnecessário.
Damian perdeu o pouco brilho que ainda restava nos olhos ao ver a criatura — a mesma que destruíra sua tarde, seu senso de mundo — caminhar até ele.
— Eu me pergunto... — sibilou a voz sádica, enquanto o ergueu pelo pescoço com um só braço.
Os pés de Damian se debatiam no ar.
— Qual será a reação dele... — continuou, com um sorriso encharcado de crueldade — quando souber que eu arranquei a cabeça do irmãozinho?
Os olhos de Damian brilharam com uma vivacidade involuntária, banhados pela chuva.
— O... meu irmão? Ele está vivo?! — perguntou, entre respirações curtas.
— Que noite magnífica será hoje! — exclamou o híbrido, embriagado de sede por sangue.
O machado brilhou em sua outra mão. Apontou-o para a garganta de Damian. O garoto fechou os olhos. Não rezou. Não gritou. Apenas esperou. O corpo tombou no chão, largado. Ao reabrir os olhos, Damian viu um antebraço caído. Partido.
E uma poça de sangue verde se espalhando aos poucos na lama. Engoliu seco. O estômago se revirou.
O híbrido olhava para o lado direito do corpo — agora sem braço. Estático. Ímpio.
— Vai! — gritou a voz da garçonete.
O coração de Damian relaxou. Sem hesitar, obedeceu. A criatura também reagiu.
Rugiu, tomado pela fúria. Damian correu, temendo que o machado viesse em sua direção outra vez. Mas o inimigo era mais traiçoeiro do que parecia.
A corrente em seu cinto se soltou sozinha. Como uma cobra viva, voou em direção à perna de Damian. Ele mal teve tempo de entender. Sentiu o peso metálico no tornozelo — e caiu.
A corrente se enroscou firme em sua perna, apertando como um réptil faminto. Ainda no chão, a garçonete desviou por pouco do machado lançado pelo híbrido.
Mas ele não parou.
Insano e astuto, correu até a metade da lança caída no barro — a mesma que lhe arrancara o braço. Quando tentou tocá-la, algo inesperado aconteceu. A lança o repudiou. A madeira queimou sua mão como fogo direto do inferno.
Ele recuou, atônito, os olhos arregalados.
— Uma jura de sangue?!
— Eu também tenho meus truques — respondeu a garçonete, sem tirar os olhos dele.
Ao fundo, Damian lutava contra a corrente viva. Ainda subia, engolindo sua perna como se quisesse absorvê-lo.
Essa não, pensou. Essa não...
O desespero corroía sua mente.
Capítulo 5 - Não se trata de um sacrifício
O machado não conseguiu voltar a tempo. A garota fincou sua potente arma na terra molhada, erguendo uma barreira furtiva que impediu o retorno da lâmina ao dono.
— Não, sua maldita! — vociferou o híbrido, avançando mesmo sem o braço.
A jovem girou o corpo junto à lança, como em uma dança afiada que abrangia a criatura. Não hesitou — nos segundos seguintes, cortou qualquer chance de defesa. Fez o híbrido tombar, caindo de costas na lama, arfando.
— Solte-o! Chame a corrente! — gritou, com a lança pressionando o pescoço do inimigo.
— Acha mesmo que pode fazer alguma coisa?! — retrucou ele, em fúria.
— Estou sumindo! — A voz de Damian saiu agoniada.
Agindo por instinto, a garçonete voltou a dividir sua arma.
— Pegue! — ordenou, atirando metade da lança na direção do garoto.
A arma ultrapassou a barreira com precisão, cravando o chão ao lado de Damian.
Ele arrastou-se até ela, tomando-a com esforço. Sentiu o peso distinto.
Sem muito mais a fazer, golpeou a corrente.
Faíscas explodiram. Os anéis, como ratos acuados, bateram em retirada.
O híbrido, ainda no chão, quis reagir — mas foi impedido pela garota, que o manteve sob a ponta de sua lança.
Agora, a atenção do inimigo se voltou inteiramente à garçonete.
— Por que um Halvina como você está aqui?! O que quer com ele?
— Você vai pagar por isso... vou dilacerar você, maldita! — rosnou, entredentes.
Ela pressionou ainda mais a ponta afiada no peito dele.
— O que você quer aqui?
— Não pense que isso acabou. Você não pode me matar! Não é ninguém... não é um deles!
E então, sem aviso, o híbrido mordeu a própria língua.
Seu corpo começou a apodrecer de dentro para fora. A garçonete piscou várias vezes, observando, imóvel, enquanto ele desaparecia diante de seus olhos.
O restante do corpo, dissolvido em pó, foi levado pela chuva. A ponta da lança desceu, tocando a terra. Já não havia mais alvo.
— É... eu não sou — murmurou, num tom baixo, como resposta ao inimigo que sumira.
Damian, largado no chão, levantou-se mancando.
— O que aconteceu? Você o matou?
— Não.
— Não?! Para onde ele foi, então?! — perguntou, aturdido, aproximando-se.
— Ele sacrificou o próprio corpo para se salvar. Deve estar se regenerando, escondido, em algum canto. — A expressão de Damian voltou ao que era antes: repleta de angústia. — A culpa foi minha. Eu vacilei. Deixei o braço dele escapar.
— O quê? O braço?! Onde está? Estava aqui há pouco! — O garoto girou a cabeça em todas as direções, procurando o membro perdido.
— Eu falei, não falei? Híbridos são difíceis de matar porque podem se regenerar a partir de qualquer parte do corpo.
— Por que foi cortar o braço dele?!
Ela o encarou com firmeza.
— Por que se deixou ser pego?
Damian piscou, confuso.
— O que isso quer dizer? E agora? O que vai acontecer?
A garota endireitou-se. Tomou dele a outra metade da lança e voltou a uni-las com um gesto firme. Apoiou-se sobre a arma. Os dois se olharam em silêncio.
— Isso quer dizer que temos algumas horas de paz. Talvez até amanhã.
Damian apertou os olhos.
— Você só pode estar brincando comigo! — exclamou, gesticulando. — E se estiver errada? Talvez ele esteja morrendo em algum canto!
Ela suspirou, transferindo o peso do corpo.
— Eu gostaria de poder concordar com você... mas a marca da mão dele ainda está no seu pescoço. Ela só vai desaparecer quando ele estiver morto.
O rosto de Damian empalideceu. Apalpou o pescoço, sentindo ali o formato de uma mão.
— Como sabe de tudo isso? — indagou, mas não houve resposta. — Okay, e o que fazemos até lá?
— Pode começar tentando entender por que isso está acontecendo com você — disse ela, já se afastando. Damian a seguiu. Sirenes ecoavam ao longe. — Preciso de um tempo antes de enfrentá-lo de novo.
— Você vai mesmo? — Ele a fitou de lado.
A garçonete virou-se devagar.
— Não há mais ninguém que possa fazer isso, certo? — murmurou, como se guardasse um segredo. Damian se deteve nos olhos negros dela, que pareciam esconder algo. — É melhor não querer saber por que estou ajudando você. Não me force a perceber que não ganho nada com isso. Que estou só arriscando minha vida por um garoto que nem conheço... e que, inclusive, foi muito mal-educado quando nos conhecemos.
O rapaz engoliu seco.
— Desculpe por aquilo — disse baixo.
— Seu irmão já havia pedido desculpas por você, de qualquer forma — concluiu ela. Voltaram a caminhar, lado a lado. Damian pensou rapidamente em Elio. — A propósito... quem exatamente é o seu irmão? Ele estava com a cabeça cheia de Energia Refulgente.
— Energia Refulgente? O que é isso? — perguntou, intrigado. Ela lançou um olhar vago, como se ele não merecesse resposta.
— Sua pergunta só prova que você realmente não sabe nada sobre a vida dele, não é?
Damian pisou forte na terra encharcada, passou a mão na nuca, perdido.
O que eu deveria saber sobre o Elio? O que ele estava escondendo? Ele está bem? E tem algo a mais que quero saber... mas é sobre você, pensou.
— Eu não sei o seu nome — disse, enfim.
A garota hesitou por um momento.
— É Autumn.
— Só Autumn?
— Sim. Só Autumn.
— Bem... eu me chamo...
— Dante, eu sei. Ouvi pelo seu irmão.
— Na verdade, é Damian. Damian Montgomery. Só meu irmão me chama de Dante.
Autumn ergueu as sobrancelhas, surpresa.
— Tudo bem — disse, voltando a andar. — Você não vem, Dante?
O garoto piscou, acompanhando-a.
— É Damian — corrigiu. — Aonde estamos indo, afinal?
— Para minha casa.
— Por quê?
— Porque é para onde vou. E, se quiser proteção, vai comigo.
Damian suspirou, balançando a cabeça. Não havia escolha.
— É longe?
— Sim.
— Não tenho dinheiro para táxi.
— Muito menos eu, Dante.
Continua.








