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Aether Candelions: Divina Saga

Webnovel | Gênero: Fantasia | Classificação +14.

Contém violência, palavras de baixo calão, assassinato.

Capítulo 6 - Curta Espera


 

Após uma longa caminhada, as roupas encharcadas pela chuva começaram a secar. 

No caminho, eles passaram pela cafeteria, onde a garota discretamente pegou uma mochila. Damian ficou curioso sobre a rapidez com que ela o alcançara, mas nada disse. Não tinha muito o que falar.

A garota mancava de vez em quando, o que fazia Damian se perguntar o quão ferida ela realmente estava. Os machucados visíveis denunciavam a gravidade, mas Autumn não parecia dar importância. A lança havia desaparecido também. Com um simples movimento de mão, a arma sumira — sugada por uma fenda invisível, quase imperceptível aos olhos. 

Damian escolheu não perguntar, mesmo com as dúvidas presentes dentro dele.

Autumn morava em um prédio de dez andares. O único elevador estava interditado. Já era o sexto lance de escada, e ela sequer demonstrava cansaço. No entanto, Damian tinha o rosto abatido, como um cão de rua que seguia alguém sem saber se podia confiar. Ainda não havia intimidade entre eles para romper o silêncio.

Quando pararam diante de uma porta, ele não se conteve:

— Você mora mesmo aqui?

Observando o entorno, Damian concluiu que o prédio não via uma reforma há anos. As paredes pediam reboco, a pintura descascava, e a iluminação fraca mergulhava tudo numa penumbra inquietante.

— Sim, moro mesmo aqui.

Autumn remexeu debaixo do tapete até encontrar uma chave solta.

— Deixa a chave aí? — perguntou ele, franzindo a testa.

A garota abriu a porta sem responder e deu passagem:

— Entra logo.

No apartamento, Damian encontrou exatamente o que esperava: um espaço pequeno, mas limpo e organizado.

— Pode descansar no sofá — disse ela, caminhando para outro cômodo.

Damian apenas acenou, mas não usou o sofá. Foi até a janela, encostou-se à parede e deslizou até o chão. Cobriu o rosto com as mãos.

Claro que você ia começar a doer agora, pensou, sentindo a cabeça latejar. Que bagunça.

O garoto sentiu a brisa atravessar a janela e tocar sua pele com uma delicadeza cortante. A noite permanecia fria e escura. Miados e latidos vinham de longe, quebrando o silêncio.

Concluiu que precisava fazer um telefonema. Não tinha mais o celular, nem a carteira com seus documentos. Os óculos escuros e o boné haviam sumido também. Restara apenas a roupa do corpo e o casaco manchado.

— Pode me emprestar o celular? — pediu ele, ao vê-la passar.

— Não tenho um. Mas pode usar o telefone, ali perto da televisão — respondeu, apontando antes de seguir até a porta.

— Vai sair? — perguntou, levantando-se e indo em direção ao aparelho.

Já com a mão na maçaneta, Autumn respondeu:

— Vou até a vizinha pedir alguns curativos. Não tenho nada aqui, e acho que precisamos. Você está com sangue seco no rosto. Precisa se limpar.

Quando a viu sair, Damian percebeu que sequer perguntara como ela estava. A própria aparência não lhe importava mais.

Será que ela se feriu gravemente?

Se sim, não dava sinais. Talvez Autumn fosse ainda mais forte do que ele havia imaginado.

Pressionou os botões no pequeno telefone de disco. Bastaram dois toques até a linha ser atendida.

— Alô?

— Sou eu — disse, seco.

— Damian? Por que está ligando de um número estranho? Você tem ideia de quantas vezes tentamos falar com você?

— Imagino.

— Aconteceu alguma coisa?

— É que... eu não sei por onde começar.

— Que tal pelo começo?

— Eu... sofri um acidente.

— Está falando sério? Não está brincando, está?

— Não, não estou.

— Meu Deus. Você está bem? Está machucado?

— Estou bem. Não se preocupa. O táxi onde eu estava se envolveu num engavetamento. Na Estrada Nº6.

— O quê?! Eu vi isso no noticiário. Não acredito que você estava lá. Tem uns vídeos estranhos circulando, não dá nem pra explicar... mas você tá mesmo bem? Onde você está? Vou aí.

— Não, Mia — negou com rapidez. Como poderia colocá-la em perigo?

— Não? — A voz dela mudou. Damian ouviu a porta se abrindo e se fechando. Inibido, decidiu encerrar a conversa.

— Mia... desculpa. Vou precisar sair da cidade por uns dias. Provavelmente vou ficar sem contato. Fala para eles, tá?

— O que isso quer dizer?

— Quer dizer que... — lançou um olhar breve para a garota ao seu lado. — Vamos passar um tempo sem nos ver. Até eu resolver as coisas.

— Essa é a pior desculpa que você já deu, sabia?

Ele ficou em silêncio.

— Damian?

— Tchau, Mia.

Recolocou o fone no gancho devagar, até ouvir o clique. Quando levantou os olhos, encontrou o olhar de Autumn. A garota estreitou os olhos, como quem compreende.

— Sua namorada?

— Não. — Balançou a cabeça, quase triste com a ideia. — Era só uma amiga. Foi melhor assim.

Autumn acenou, segurando uma caixinha na mão.

— A minha vizinha não tinha muita coisa. Vou ver o que consigo fazer. Precisa de algo? — Ele negou com a cabeça. — Certo, então. Vou me trocar. Pode ficar à vontade e lavar o rosto na pia da cozinha. Ah — e olhou de relance —, não precisa continuar sentado no chão. Só evite ligar a televisão. A mídia está tentando desvendar aquela coisa.

— Ele foi gravado?

— Nada nítido. Pelo que vi na TV da minha vizinha, o motorista do táxi deu uma entrevista.

— Então ele está bem? — O rosto de Damian se iluminou por um instante.

— Sim, muito bem. Tão bem que falou com todas as letras sobre uma criatura horrenda pousando no para-brisa. Acho que foi assim que o acidente começou. Ele até mencionou dois jovens que estavam com ele... e que sumiram depois que o carro capotou.

Damian levou a mão à boca, pensativo.

— Isso já está fora do nosso controle — comentou ela. — Tente não enlouquecer.

Depois, desapareceu pelo corredor, entrando no banheiro.

— Não enlouquecer...?

Damian se irritou, a expressão murchando. Não tinha como fazer isso. Não quando tudo escorria por entre os dedos como vidro molhado.

Ignorou o sofá, mesmo depois da sugestão. Lavou o rosto na pia da cozinha, mas não se sentia limpo. Nem presente. Voltou ao chão, onde estava antes. A presença da garçonete, os cuidados, os curativos improvisados — tudo aquilo o incomodava.

Havia sido ríspido mais cedo no café. Agora, preso ali, sob proteção, não podia evitar o desconforto. Era isso que sentia? Culpa? Não sabia nomear. Mas sentia.

Com a cabeça entre os joelhos, desejou que o dia acabasse.

Elio.

O nome do irmão veio como uma pedra jogada em poço fundo. Preocupação e indignação o cercavam. O que Elio escondia? Por que tudo veio à tona daquela maneira? Queria vê-lo. Encurralá-lo. Quem sabe... abraçá-lo.

Depois de algum tempo, sentiu algo macio pousar sobre os ombros. Ergueu a cabeça. Uma manta perfumada. E Autumn, agora sem o uniforme rasgado.

— Eu disse para não ficar se lamentando.

Ela vestia roupas leves: calça e casaco de moletom. O cabelo preto azulado estava solto, na altura dos ombros. Tinha olhos pequenos, escuros como jabuticabas. Não era alta, mas seu corpo chamava atenção — firme, definido. Os machucados no rosto estavam agora cobertos por curativos.

Autumn caminhou até a pequena cozinha, abrindo a geladeira e batendo os dedos freneticamente no inox.

Como ela consegue estar tão calma? Pensou ele, incomodado.

一 Não estou me lamentando. — Damian respondeu em seguida, um pouco afetado. Usou a manta para se cobrir. Tinha um cheiro bom. — Estou tentando descobrir o que fazer agora.

一 Vamos esperar 一 disse ela, os braços cruzados, olhando com desgosto o que via na geladeira. 一 Quer água, chá gelado?

一 Sim.

— Sim, o quê?

— Quero chá gelado.

Capítulo 7 - Enquanto estamos sozinhos

Com duas latinhas de chá gelado e pacotes de salgadinhos, Autumn sentou-se no sofá e largou tudo na mesinha de centro. Damian apenas se serviu do chá.

— Sabe... o híbrido vai voltar mais forte. E com mais raiva — relembrou ela, baixinho, ao abrir a lata.

— Não está preocupada?

— Eu deveria, mas minha arma está descansando para isso.

— Não falo da sua lança. Falo de você. Consegue fazer tudo aquilo de novo? — Damian trazia no rosto uma inquietação incapaz de controlar.

— Espero que sim, porque ainda não tenho um plano B para você. Preciso combatê-lo até o fim da linha. — O modo despreocupado como dizia isso o deixava mais aflito. — Não parece ter muita fé em mim, mesmo depois de eu ter te salvado.

— Não é isso. É que... você ainda é uma garota, e não há nada que eu possa fazer para ajudar.

— Bem, isso é verdade. Mas, se serve de consolo... — recolheu as pernas e abraçou-os joelhos, hesitando — eu não fui criada exatamente como as outras garotas.

— O que isso significa?

Autumn apenas ergueu os ombros. Damian a encarou alguns segundos, observando-a beber o chá. A voz dela inspirava segurança, mas ele não se sentia protegido; mal compreendia o que a garota queria dizer.

— Por que me ajudou? — perguntou, enfim.

— Eu disse para não fazer essa pergunta.

— Então me diga o que perguntar! Tudo está de cabeça para baixo: não estou na minha casa, não sei se meu irmão está vivo, não posso falar com meus amigos porque ninguém acreditaria... sem falar neste carimbo da morte no meu pescoço! Eu só...

Faltou-lhe ar. Enquanto respirava fundo, Autumn olhou para a noite além da janela, onde as estrelas lutavam para surgir. A lua brilhava, no entanto. 

— Bem... não sei. Salvei você porque... era o certo a fazer. Deve-se salvar as pessoas.

— O que isso quer dizer? Quem é você, afinal?

Ela o ouviu, pensativa, depois deu de ombros.

— Honestamente, sinto que nada do que eu disser responderá às suas perguntas.

— Diga alguma coisa. Algo que faça sentido. Algo que explique você manusear uma lança como se fosse um lápis.

— Ninx.

— O quê?

— A minha lança. O nome dela é Ninx.

— Ah, ela tem um nome... espera, por que consegui segurá-la e aquela criatura não?

— Porque eu permiti. A Ninx só obedece a mim. E reconhece quem traz más intenções.

— Então... ela é mágica?

— Se ela é mágica? Ah, boa pergunta. — Autumn inclinou a cabeça, buscando as palavras certas. — Quando vi seu irmão pela primeira vez, ele me chamou bastante atenção. Consegui enxergar sobre a cabeça dele um tipo de energia chamada Refulgente. Essa energia indica que ele veio de outro lugar. É própria de terras distantes. Só percebi porque a chegada dele ainda era recente. Passados alguns dias, essa energia desapareceria.

Os olhos de Damian escureceram. Seu rosto parecia uma interrogação viva. Queria entender como ela sabia de tudo aquilo, mas escolheu outra pergunta:

— Que outro lugar seria esse?

— Depois que vocês se foram — ignorou a pergunta —, vi a notícia na TV sobre os ataques. As gravações eram ruins, mas suficientes. Vi o híbrido. A raça Halvina. Reconheci de imediato. — Autumn falava mais para si do que para ele. — Esse híbrido também carregava uma forte Energia Refulgente. Foi por isso que consegui chegar até vocês. Usei a Ninx para localizar a fonte mais próxima e segui até lá. Requer muito poder... e eu não fazia isso havia muito tempo. Acredite, também me surpreendi ao ver que você era o alvo.

— Como exatamente você chegou lá? — Damian questionou, mas ela apenas piscou em resposta. O garoto suspirou. — E por que quis me ajudar?

Autumn fez uma careta.

— Qual é a sua obsessão com essa pergunta? Por que quer tanto saber?

— Só responde.

— Não sei. — Deu de ombros. — Quando o vi sendo dominado, sem conseguir se defender, senti que precisava fazer alguma coisa. Também vi os dois policiais no chão... mortos. Naquela hora, eu sabia que poderia me arrepender de ajudar você, mas... será que o arrependimento de deixá-lo morrer seria menor? Acho que não.

Damian engoliu em seco. Autumn baixou as pálpebras, pensativa.

— Talvez eu não conseguisse voltar para casa, dormir em paz, sabendo que poderia ter feito algo. Pensando bem... fiz mais por mim do que por você. Fiz para não me sentir mal comigo mesma.

O garoto ergueu um joelho e apoiou o cotovelo sobre ele.

— Ainda assim, fui grosseiro com você.

— Pelo menos tem consciência disso.

— Bem, criei uma no momento em que disse que não ia deixar aquela coisa me matar.

— Você não foi a primeira pessoa a ser babaca comigo, não se ache tão especial. — A voz dela saiu firme, e Damian a interpretou como ironia. — Eu não ia deixar você morrer só porque foi grosseiro. Que tipo de gente você conhece?

Ele não soube responder. O silêncio preencheu o espaço entre eles.

— Tem mais alguma coisa que quer dizer? Porque parece que tem. — Autumn notou os olhares insistentes de Damian.

— Esse "outro" lugar... — ele retomou, com hesitação. — Você costumava viver lá?

Autumn o fitou sem piscar. Damian quase encerrou a conversa ali, mas ela respondeu:

— Sim.

— E por que está aqui?

— Sua curiosidade está ficando desconfortável.

— Só quero saber. Não é como se tivéssemos outra coisa para fazer.

— Vai dormir.

Autumn se deitou por completo no sofá, enrolando-se na manta que havia trazido. Virou-se de costas para ele. Damian, então, deitou-se no chão, imitando o gesto — mas antes tirou o casaco e o dobrou, usando-o como travesseiro.

— Não é como se eu conseguisse dormir — murmurou, fechando os olhos.

— Problema seu — rebateu ela, debaixo da manta, com um tom ácido. Alguns segundos se passaram. Autumn se desenrolou com impaciência e prendeu o olhar no teto. — Todos os dias, acordo cedo. Dou uma volta no quarteirão correndo, volto e preparo meu café da manhã. Assisto a um programa de culinária e logo me arrumo para o trabalho. No caminho, dou comida a um gato laranja de rua, que vive numa esquina aqui perto. Quando chego na cafeteria, meus colegas me recebem bem, sabia? Eles gostam de mim. No fim do turno, posso tomar uma bebida quente e ouvir as fofocas do dia. E quando finalmente volto para casa, trazendo pedaços de frango frito — que geralmente servem duas pessoas —, vou dormir de barriga cheia e satisfeita com o meu dia. — Fez uma pausa. Damian também fitava o teto. — Só espero que o dia seguinte chegue, para que eu possa fazer tudo de novo. É isso. Essa é a minha vida agora... e eu gosto dela. Nenhuma outra vale a pena. Em nenhum outro lugar.

Quando Autumn terminou de falar, Damian teve a impressão de que aquele discurso servia mais para ela do que para ele — como se estivesse tentando se convencer de algo. E percebeu que da boca dela não ouviria nenhuma explicação que realmente respondesse às suas perguntas.

Ele não a conhecia. Não podia supor sobre a vida de uma desconhecida. Mais cedo, Autumn era somente a garçonete que, por um descuido, havia sujado seu casaco. Mas agora... conseguia escutar mágoa em sua voz. Falar sobre o passado a irritava, era evidente. E só o fato de ela tê-lo salvado, mesmo com tanto a esconder, já dizia muito.

O que seria? Esse pensamento lhe atravessou como uma faísca. Do que ela fugia com tanto fervor?

— No que está pensando tanto? — Autumn perguntou de repente, virando-se para observá-lo em silêncio.

— Em nada.

— Está pensando no seu irmão? — A pergunta veio como um estalo. E, de repente, Damian se viu sem escolha a não ser pensar em Elio. — Como nunca percebeu que havia algo errado com ele?

— Achei que era para dormirmos — respondeu ele, distante, um pouco magoado com a obviedade daquela pergunta.

— É que seu irmão me deixa curiosa. Quem é ele, exatamente?

Damian fechou os olhos, depois os abriu com um suspiro.

— Acho que nem eu sei.

— Como assim? Não são irmãos?

— Não é isso — disse ele, virando-se de costas para ela, como uma criança contrariada. — Você não entenderia. Passamos mais tempo separados do que juntos. Fomos criados pelos nossos avós. E aí, um dia, ele simplesmente se foi. Foram poucas às vezes que realmente fomos uma família.

Autumn o escutava em silêncio, séria.

— Eu o entendo, na verdade... — murmurou. Mas Damian não a ouviu.

— Elio era uma pessoa normal. Ou, pelo menos, devia ser. Tenho fotos dele pelo mundo. O último lugar onde esteve foi a Inglaterra. Eu acabara de buscá-lo no aeroporto quando tudo aconteceu.

— Vocês se reencontraram hoje? — Ela analisava, cuidadosa.

— Sim, isso mesmo.

— Talvez o híbrido o tenha seguido até aqui. Esperou o momento certo para atacá-lo — o mais vulnerável. Mas por quê? Por que tentar matar você em vez de levá-lo como refém? E como sabiam de você... se é, aparentemente, um ignorante?

Damian piscou, voltando a fitá-la.

— Tenho a impressão de que você está tendo uma conversa consigo mesma e me deixando de lado.

— Há muitas pontas soltas.

— Nem precisava dizer.

Autumn respirou fundo, aninhando-se no sofá outra vez.

— Vamos esquecer isso tudo por um instante...

— Até parece.

— ...e tentar descansar. Faça isso. Arrisco dizer que as coisas só vão piorar para o seu lado. É melhor começar a se acostumar com a ideia.

Damian mordeu os lábios e silenciou. Depois disso, cada um mergulhou em seu próprio mundo — calados, distantes.

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Capítulo 8 - O chamado de Trickster

Não sabia se aquilo era sonho ou lembrança. Estava de volta à antiga casa e reconheceu o lugar pela quantidade absurda de plantas e pelos ornamentos religiosos — decoração da avó, é claro.

Era noite. Caminhou até o quarto, deixando os avós na sala de estar, entretidos com um apresentador carismático na televisão.

Damian, então com doze anos, era um garoto de mãos claras, rosto bronzeado e cabelo recém-cortado que espetava o ar. Não era alto para a idade e, por isso, virava alvo fácil das piadas na escola. Mesmo assim, permanecia perto daqueles amigos de humor raso, sem entender exatamente por quê.

Em casa, a companhia dos avós não o incomodava; eles apenas custavam a compreendê-lo. Achava graça especialmente no avô: um homem que andava com dificuldade, usava óculos diminutos e mantinha um gosto alimentar questionável. Ainda assim, o carinho dos dois era sem fim— e Damian se sentia amado.

Atirou-se na cama, preguiçoso, decidido a ler uma revista em quadrinhos. Tinha uma edição nova, ainda envolta em plástico transparente — presente do irmão mais velho, entregue pouco antes de Elio partir, levando apenas uma mochila e sem dar explicações.

De barriga para cima, ele fitava a revista sobre a mesa. À época, quis jogá-la fora. Um dia, voltando da escola, tentou arremessá-la no rio, mas um colega o deteve: "Se não quer, dá pra mim." Damian hesitou. A capa vermelha exibia um garoto de sorriso maroto — Trickster. Irritado, não a jogou no rio nem a entregou ao amigo; levou-a de volta para casa, presa debaixo do braço.

Levantou-se desleixado, pegou a revista e ouviu a avó gritar da sala:

— Damian, não vá dormir sem escovar os dentes!

— Eu sei! — devolveu no mesmo tom.

Encostou a porta do quarto, sentou-se na cadeira giratória e puxou-a para perto da janela. Examinou a revista, aborrecido. A memória do dia em que Elio partira voltou com força: o céu nublado, carregado de nuvens escuras. Desde então passara a detestar chuva e a amar dias de sol. A imagem do irmão se afastando o corroía. Pedira para ir junto, mas Elio respondera: Ainda não. Talvez um dia; agora você ainda é criança.

Damian detestava Elio.

Com o canino, rasgou o plástico que envolvia a revista, sentindo o cheiro de papel novo invadir o nariz. Passou a mão pela capa mole e leu a sinopse estampada em letras inclinadas:

Imagine o destino do mundo cair nas mãos de alguém trapaceiro e irresponsável — e esse alguém ser o único capaz de salvá-lo? É exatamente o que acontece com Trickster, um garoto levado e desordeiro, encarregado de impedir os planos do Anel de Lough Dur, uma seita astuta que deseja ressuscitar um antigo Deus do Sinistro.

Damian coçou o nariz, intrigado. Nunca ouvira falar de algo assim. Deixou que as páginas escorressem entre os dedos, sem intenção real de ler — até que um som o distraiu, obrigando-o a erguer os olhos.

A janela aberta oferecia vista para a noite. Viviam cercados por árvores, numa região pouco habitada, envolta por paisagens naturais. Não havia vizinhos próximos. Nem cães, nem gatos. Ainda assim, ao fitar a escuridão, Damian teve certeza de que vira algo.

Algo disforme. Algo que seu cérebro não reconhecia. Algo que fez o coração disparar.

Soltou um soluço e deixou a revista cair no chão. Levantou-se de súbito, recuando um passo, puxando o ar como quem teme perdê-lo. O som persistia, e a penumbra começou a tomar forma.

O garoto perdeu a voz. Quis chamar os avós, perguntar se também viam aquilo — mas não conseguiu.

A figura tinha rosto de mulher e corpo de cobra. Braços finos, pálidos, olhos opacos de um verde morto. A boca, vermelha, salivava como se visse uma refeição prestes a ser devorada.

Damian engoliu em seco. Esfregou os olhos com força, em busca da própria voz. A cabeça da criatura deslizou diante da janela — sorrateira, como uma sombra viva.

Os dedos do menino gelaram. E o ar em seu quarto começou a desaparecer.

Em pensamentos infantis, costumava ouvir os pesadelos dos amigos — e até se vangloriava por não tê-los. Achava-os bobos, irreais. Agora, enfim, compreendia. Estava dentro de um deles. Um pesadelo. Tenebroso e impossível. Aqueles dentes afiados à sua frente não passavam de criações do subconsciente perturbado.

Piscou, esperando que a cabeça sumisse.

— Consegue me ver? — murmurou a criatura, e o queixo de Damian tremeu. — Coitadinho... tão cheio de emoções... tristeza, solidão, revolta... será uma refeição deliciosa.

O garoto gritou.

Fechou os olhos. As lágrimas surgiram em reflexo, e o corpo inteiro se sacudiu de medo. A porta atrás dele escancarou-se com violência. Os avós entraram no quarto num sobressalto.

Naquela noite, nenhum bicho-estranho-com-cabeça-de-mulher foi encontrado. O avô saiu, vasculhou a área, voltou pouco depois, dizendo que não havia nada fora do comum.

Damian soluçava no colo da avó, assustado demais para falar. Os adultos tentaram convencê-lo: fora apenas um sonho. Uma alucinação. Nada daquilo poderia existir.

É claro, com o tempo, o garoto aprenderia a contar para si a mesma história. Foi só um pesadelo... uma loucura momentânea. Mas naquela noite, naquele instante, ele ainda não acreditava nisso. O que viu era real. Tinha voz, forma, presença.

E queria devorá-lo.

Por isso continuou a chorar. Não voltou ao próprio quarto por muitas noites. Nem sequer se aproximava da porta. O medo era sentido em cada célula do corpo — o que testemunhara era cabuloso e aterrador. Tão violento que só o abraço da avó conseguia aplacá-lo.

E, enquanto se agarrava a ela, sem querer soltá-la nunca mais, sentiu uma queimação estranha na nuca. Como se algo pegasse fogo ali.

Sua cabeça estava quente. Queimava.

Sentou-se num sobressalto, de olhos abertos.

Estava no pequeno apartamento da garçonete — a garota que salvara sua vida. Autumn.

Passou a mão na parte de trás da cabeça, ainda em brasas. Olhou de lado. A menina adormecera, assim como ele. Avaliou o ambiente com atenção: tudo estava como antes. A manta perfumada ainda o envolvia, Autumn dormia no sofá ao lado, e a noite persistia do lado de fora.

— Por que minha cabeça está tão quente? — murmurou para si, ainda sentindo os ecos do sonho recente.

E por que me lembrei disso agora? questionou-se, recostando a cabeça sobre o apoio improvisado com o próprio casaco. Mas recuou de imediato — a quentura o atingiu como uma labareda súbita.

Levantou-se, surpreso. Uma pequena faísca alaranjada cintilava no tecido do casaco. Brilhava como um vaga-lume. Vibrava. Chamava.

Hesitou, procurando Autumn com os olhos. Ela ainda dormia, serena, alheia a tudo.

Com esforço, segurou o casaco e o levou até a cozinha, sem fazer barulho. Desenrolando o tecido com cuidado, ouviu um som seco: algo pesado caiu.

Seu corpo enrijeceu. Temia ter acordado a garota. Mas não — Autumn continuava imóvel, entregue ao sono.

Olhou para a pia. O objeto estava ali. Dourado, mas agora opaco, como se tivesse perdido parte da energia. Aproximou-se. Tocou-o com hesitação. Não queimava mais.

Pegou-o.

Era pequeno. Envolto por um material que lembrava ouro. Asas esculpidas em relevo, abertas como em pleno voo. Entre elas, uma longa espada erguia-se — fundida ao desenho, como se o completasse. O trabalho era detalhado, impecável. Um símbolo, não uma peça comum.

Por um instante, pensou tratar-se de um isqueiro elétrico. Algo de aparência exótica, talvez.

Mas Elio não fumava. Isso o intrigou.

Estava prestes a retornar ao sofá quando deu de cara com Autumn. Levou um susto. Deu um passo para trás, a mão no peito.

— Você me assustou — disse, ainda ofegante.

Ela não respondeu. Os olhos estavam fixos no objeto em sua mão. Densos. Inabaláveis.

Instintivamente, Damian apertou o que julgava ser um isqueiro.

— Como você... — Autumn falou, pausadamente — conseguiu isso?

— Ah, isso? Não sei. Estava no meu casaco. Por quê? Você sabe o que é? Parece um isqueiro elétrico.

Autumn suspirou fundo, erguendo levemente os ombros.

— Estava no seu bolso? — perguntou com voz distante.

— Sim. Na verdade... eu acordei por causa disso. Mais cedo, estava quente, quase pegando fogo.

Uma lembrança invadiu a mente de Damian, súbita e clara. Elio. Antes de empurrá-lo para longe, colocando a mão no bolso de seu casaco.

— Foi ele? Elio?

— Seu irmão?

— Acho que sim. Ele deve ter colocado isso no meu bolso... mas por quê? O que é... — segurou o objeto entre dois dedos, aproximando-o dos olhos. O castanho da íris cintilava curiosidade. — Há asas gravadas aqui, com uma espada no centro.

— Espera! — a voz dela subiu, aguda. — Não faça nada, está bem?

— Ei, não me assusta assim. Eu só estava olhando de perto.

— Posso ver? — perguntou, abrindo a mão; havia um traço de ansiedade no gesto.

— Claro que pode. — Damian fingiu entregá-lo, mas fechou a mão no último instante. — Se antes me contar o que é.

Autumn piscou.

— Não brinque com isso. Você não faz ideia do que tem aí. Precisa ser protegido a todo custo...

— Pois é: não faço ideia. Por isso mesmo quero que me diga. Pelo seu rosto, isso é valioso — e você pareceu ainda mais chocada quando descobriu que veio do meu irmão. Alguma peça se encaixou aí dentro, não foi?

— Isso não importa agora! Temos de esconder esse objeto imediatamente!

— Pode parar de falar em enigmas? — bradou, apertando ainda mais o punho. Autumn empalideceu. — O que é isso? O que aconteceu com o Elio? Por que aquele híbrido tentou me matar?

— Eu já disse que não sei! Como eu saberia? E pare de balançar a mão desse jeito!

— Você sabe de alguma coisa, sim. Por que está tão nervosa? — elevou o braço, o queixo tenso. Autumn fechou os dedos, contrariada.

— Estou pedindo. Entregue para mim. Agora — sibilou, rangendo os dentes. Ele não cedeu.

— Por que não usa sua lança para tomar de mim? — provocou.

— Porque ela não foi feita para atacar pessoas. — Ao ouvi-la, Damian se lembrou de como ela o salvara. A cena lhe devolveu lucidez e a situação lhe pareceu subitamente ridícula. Baixou os olhos, vencido.

Fitou o objeto reluzindo em seu punho cerrado.

— Não sei o que estou fazendo... e isso, certamente, não me pertence. — Estendeu o pequeno artefato dourado. — Pegue.

Soltou um longo suspiro enquanto Autumn fechava a mão sobre ele.

Foi quando, prestes a ser entregue, o objeto criou vida. Uma vida que irradiava algo tão intenso quanto a luz do sol.

O artefato se abriu, desfazendo-se em múltiplas partes. Das pontas dos dedos até o antebraço, a pele de Damian foi revestida por uma blindagem áurea que se unia como atraída por um ímã, encaixando-se com precisão sobrenatural.

O que você fez?! — a voz de Autumn ecoou na cozinha.

Eu não fiz nada! — respondeu Damian, a respiração entrecortada, enquanto via o braço esquerdo ser tomado por aquilo. Era uma armadura. Estava quase fundida à sua pele. — O que está acontecendo? Por que isso grudou em mim?

— Não pode ser... — murmurou Autumn, observando-o contorcer-se numa tentativa inútil de arrancar o metal. — Ela se manifestou por conta própria...

— O quê não pode ser?! O que se manifestou? Autumn, por favor!

— Por que ela se manifestou? Por que escolheu você?!

— O que isso significa, droga?!

Os olhos dos dois se cruzaram. Nenhum parecia ter respostas. Aquele instante de pura interrogação, porém, foi interrompido por um visitante indesejado.

A parede da janela explodiu, arremessada em estilhaços. Um buraco rasgou o apartamento, deixando a sala à mercê da noite lá fora. Ambos se encolheram com o impacto, mas Autumn se ergueu quase no mesmo instante, instintiva.

Tentou alcançar sua lança, abrindo a fenda oculta com um gesto — tarde demais.

O híbrido já estava sobre ela. Suas mãos gélidas agarraram a gola de seu moletom, e num só movimento, lançou-a para fora do apartamento.

— Sem mais truques — rosnou.

Damian gritou o nome dela, impotente, ao vê-la desaparecer pela abertura.

O híbrido voltou-se então para ele, olhos cravados.

— Agora... onde paramos?

Continua.

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