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Orquídeas e Perpétuas

Webnovel | Gênero: Romance, drama | Classificação +16.

Contém violência, conteúdo sexual.

Prólogo


 

Afastado de Bevan, galpão abandonado;

23h38min da noite



 

Por que você luta, Hyde? 

Um soco no queixo o derrubou. Não se defendeu. Os segundos se arrastaram. Tudo girou lentamente. Havia uma voz em sua mente. Do passado. Se era real, não sabia. Mas era doce e reconfortante.

Por que eu luto?

— E Bull Terrier continua no chão! Será que terminamos por aqui? — Um grito irrompeu em seus ouvidos.

Em silêncio, percebeu que aquele poderia ser, enfim, seu ato final. Acima, uma luz surgiu, lançando sombras sobre os contornos de sua frustrada existência. Era como pensava.

Seus olhos eram castigados pela iluminação. Ao longe, o locutor ainda gritava no microfone o nome Bull Terrier.

Deitado de barriga para cima, o gosto de sangue na boca era como um velho amigo. As pálpebras se fechando, a respiração descompassada, a máscara pinicando a pele, o suor escorrendo pelas mãos — tudo o irritava.

Sim. Por que você luta?

O chão  oferecia um conforto sem igual, como se repousar ali fosse seguro. A  sensação era curiosamente agradável, a tentação de permanecer estirado, entregando-se ao relaxe de cada músculo. Contudo, o ruído que o cercava era também uma cortina incessante, algo a impedi-lo de se render à quietude.

Porque… aqui não é tão solitário. No ringue, o mundo ao meu redor entra em equilíbrio. No ringue, não preciso pensar nela. 

Da multidão, emergiu uma voz, presunçosa e cheia de desejo por reconhecimento: 

— Por quanto tempo ficará aí, no chão? — Uma provocação infantil de seu adversário. — Tem medo de arruinar seu rostinho por debaixo da máscara?

Sentia o suor descer pela testa, a luz ainda agredindo seus olhos. A violência, antes adormecida, se agitou em seu íntimo. 

Hyde queria retaliar. 

Em seguida, um movimento inesperado quebrou o transe. Seu adversário, Quebra-dentes, agarrou-o pela perna, arrastando-o de volta à realidade crua do ringue. 

— Bull Terrier está sendo levado por Quebra-dentes! — A voz do locutor invadiu o espaço, contagiando a multidão. — Será o fim do Terrier?

Ele acha que eu apaguei? Ponderou, com sua breve trégua sendo cortada. Era imperativo reagir, ainda contra a própria vontade. 

Havia entrado naquela furada sem pensar, desejando apenas ser entregue ao êxtase dos golpes de estranhos, mas em vez disso, encontrou-se naquela situação.

O que está fazendo? — A voz finalmente chegou, desesperada e familiar, como um farol atravessando a tempestade noturna.

Graças àquela voz, o lutador se viu transportado para outro mundo, um interlúdio, talvez, em seu mar de pensamentos. 

Não estava mais no ringue frio, mas sim no topo de um edifício escolar. Observou os estudantes abaixo, pequenas figuras de liberdade e despreocupação. Os jovens brincavam e riam. Parecia ser um bom sinal.

Moleques malditos, pensou com uma ponta de ironia e um olhar crítico. 

— Ei! Fiz uma pergunta! — A voz conhecida insistiu atrás dele. 

Ela, como sempre, estava lá. Hyde preferiu não se virar.

— Ouvi você.

— Se você não reagir, esse homem vai quebrar a sua perna! — A voz, melódica e quase penetrante, tinha força o suficiente para romper a armadura do rapaz. Hyde apertou os olhos, como se risse de algo que jamais ousaria dizer em voz alta.

— Me deixe em paz. — Estava implorando. 

Porém, a estudante não se comoveria nem mesmo se o rapaz ficasse de joelhos. 

— O quê? Você é o único aqui que deveria me deixar em paz — respondeu ela. Parecia de saco cheio. Foi o suficiente, no entanto. 

Hyde finalmente se virou, encontrando o olhar nebuloso da estudante. 

A garota tinha um rosto afiado, bonito, mas trágico —  uma saia remendada ao redor de seus joelhos, uma blusa branca, larga demais para um corpo tão esguio. O cabelo era castanho, sem ordem. O rosto era pálido, marcado pela infelicidade, havia vestígios de uma vida sofrida; os lábios eram rosados  e um curativo enfeitava o topo de sua cabeça. Os olhos da garota eram turvos, distantes, impossíveis de atravessar. O que afetava Hyde.

— Eu deveria deixar você em paz? — perguntou ele, piscando devagar.

A estudante o confrontou de volta, os braços cruzados na altura do peito.

— Do que gosta mais? Apanhar ou bater? — indagou a garota, mostrando seriedade.

— Não sei — disse ele. Era sincero.

— Tudo bem. Está tudo bem não saber — apaziguou a garota. — Apenas faça o que faz de melhor.

Hyde apertou os punhos. Podia facilmente se jogar daquele prédio. Não era real. Não morreria. 

— Qual era o nome dele mesmo? “Quebra-dentes”? Bom, por que não vai lá e muda o nome dele para “Dentes-quebrados”? — A estudante sugeriu, um esboço de sorriso aflorando em seus lábios. Não era a melhor piadista. Logo, sua feição se tornou séria, como se a gravidade da situação emergisse. — Precisa voltar, Hyde. Ele vai quebrar a sua perna.

As palavras agiram como um estalo, puxando o lutador de volta para a realidade a qual pertencia. Seu palácio mental se desfez. Em seu íntimo, um desejo primitivo de triunfo pulsava; se pudesse, arrancaria o coração do adversário.

A cabeça rodava. Perder, porém, era impensável. Num impulso, puxou a perna — Quebra-dentes vacilou. Hyde rolou para trás, ergueu-se, cambaleante. Mas algo nele queimava. E não era dor.

— O que é isso, senhoras e senhores?! Terrier voltou! — A voz do locutor irrompeu como um trovão. A multidão rugiu em resposta.

— Você não desiste mesmo, não é? — Quebra-dentes, um homem de quase dois metros, cuspiu no chão com desdém. 

Hyde deu ombros, dizendo:

— Não sei dizer se é uma qualidade ou um defeito. —  Limpou o sangue que escorria pelo corte nas têmporas. Depois, murmurou: — Vou arrancar ao menos um.

— O quê? — gritou Quebra-dentes de volta. 

— Vou arrancar ao menos um de seus dentes — afirmou sem a certeza que seu adversário ouviria.

 

 

Capítulo 1 - Em sonhos inquietos

 

Rochas abaixo, forte correnteza.

Nos meus sonhos mais inquietos, você estava lá também.

 

 

OUTUBRO

 

 

 

Bevan, Hospital; 

Quinta-feira; 06h20h da manhã

 

Quinze anos se passaram desde que uma série de assassinatos abalou os cidadãos deste país. Sete vidas foram brutalmente ceifadas em seus próprios lares, e até hoje, as investigações não conseguiram identificar o responsável por essas atrocidades.

A voz do jornalista ecoava pelo quarto de hospital. A televisão, fixada no alto da prateleira, tinha o volume ajustado para não incomodar.

Os crimes, marcados pela frieza e crueldade, deixaram famílias devastadas e o país em estado de choque. O que os torna ainda mais aterrorizantes é o modus operandi do assassino: ele tirava a vida de todos os membros da família, incluindo os animais de estimação, mas sempre deixava um sobrevivente. Uma escolha doentia, que transformou o luto em um pesadelo sem fim.

A voz seguia, firme, enquanto imagens de arquivo preenchiam a tela. A porta do banheiro permanecia entreaberta, e o som da televisão chegava até lá. Gotas d’água gotejavam na pia, mais audíveis que a notícia.

June correu os olhos pelo próprio reflexo no espelho. Lavava o rosto numa tentativa de lavar a alma. Olhos fundos, escuros como uma tempestade, aparência cansada, de quem não dorme bem há dias. Cabelo preso em um rabo de cavalo, vestes simples e sem cor. Suspirou, cansada. 

Um dia para ficar na memória. Uma homenagem solene reunirá  quase três mil pessoas na Travessia do Rio. Mais tarde, nossa cobertura completa mostrará como aqueles dias de terror ainda estão vivos nos corações de muitos cidadãos deste país. 

A torneira foi fechada. Em seguida, a porta do banheiro se abriu. June alcançou o controle remoto e desligou a TV.

— Não é cedo demais pra ver esse tipo de coisa? — murmurou.

Sua mãe continuava deitada, encarando o vazio. Estava tranquila naquele momento, mas ausente. June tentou outra vez:

— Estou indo para casa. Não está brava comigo, está?

Nenhuma resposta. Apenas o silêncio do quarto e o olhar perdido da mulher. June suspirou, aproximou-se da cama e depositou um beijo na testa da mãe antes de sair. Não olhou para trás.

A mulher não se moveu. Os olhos, distantes, afundados em uma tristeza espessa, pareciam presos em outro tempo.

— June?

A voz masculina a alcançou quando ela já se aproximava da saída. Virou-se, forçando um sorriso. Ainda era cedo, e estava exausta. Mas era Allyson.

— Soube que sua mãe cruzou a linha de novo hoje. Banho de xixi, não foi?

June não queria se estender no assunto. Manteve o sorriso e ajeitou a alça da bolsa no ombro.

— Eu devia ter esvaziado o penico dela antes.

— Sua mãe sempre transforma isso numa arma — disse ele, fazendo um gesto cômico com as mãos.

— E sempre usa contra mim — respondeu, contida.

Allyson riu, mas June não conseguiu acompanhar.

— De qualquer forma, sinto muito por não ter ajudado. Estava com outro paciente.

— Não se preocupe. Ela está chateada comigo. Prometi algo que não consegui cumprir. A culpa foi minha.

O silêncio se instalou por alguns segundos. Allyson era mais alto que June, usava óculos de lentes grossas, e o cabelo preto começava a rarear. Parecia ter alguns anos a mais — falava com ela com uma polidez quase desconfortável.

— Preciso ir agora — disse, recuando um passo.

— Claro. Vá descansar, certo?

— Obrigada.

 

Bevan, Café da Dee; 

Quinta-feira; 07h30min da manhã


 

O sino soou quando a porta se abriu. June entrou com o cabelo ainda úmido e roupas limpas. O café estava vazio. Sem hesitar, atravessou o salão até o balcão, onde Dee colocava pó de café na máquina.

— Passou em casa? — perguntou ela, erguendo os olhos.

— Sim — respondeu June, indo até a cozinha e voltando logo depois. — Minha mãe jogou o penico em mim. De novo. E estava cheio.

Dee soltou o pote e cobriu a boca. June bocejou, sentando-se num dos bancos, espreguiçando as costas.

— Pode rir — disse, tirando o celular do bolso. Abriu suas mensagens e rolou a tela. — Por que, de repente, tem tanta vaga para enfermeira? Um ano atrás não era assim.

— O quê? — Dee lhe entregou uma xícara fumegante de café e puxou um banco ao lado. — Se arrependeu de ter largado a enfermagem?

June tomou um gole antes de responder.

— Não, ainda não — disse, firme. Dee assentiu, quase orgulhosa. — Mas a conta do hospital vai aumentar de novo. Mandaram um aviso.

— Outra vez? Já não tinham reajustado no ano passado?

— Pois é. — June a encarou, pesada. — Me desculpa... eu queria continuar aqui, trabalhando com você, mas talvez eu precise procurar outro emprego.

Dee sorriu de leve, sem muita convicção. Levantou-se e voltou ao balcão. June a observou com os olhos semicerrados, prevendo o que viria.

— Eu sei — murmurou Dee, sem encará-la. — Se ao menos o movimento aumentasse, eu poderia te ajudar mais.

— Ei, não diga isso — interrompeu June. — Você já faz mais do que devia. Mas eu não posso despejar as minhas contas nos seus ombros, Deena. Só preciso... olhar além do horizonte. Alguma coisa vai aparecer.

— Claro que vai! Você cozinha tão bem. Esse café ainda respira por causa da sua comida.

Enquanto Dee falava, empolgada, June desviou o olhar para a rua, onde alguns passantes seguiam em silêncio apressado.

— Ontem, dois clientes perguntaram se ainda havia almoço. Disseram que voltariam hoje — continuou Dee.

June sorriu, pequena.

— Que bom.

— Ei? — chamou Deena. June a fitou. — Realmente vai dar certo. 

— Eu sei…

— Com as suas habilidades, você pode se tornar uma chef de cozinha. E quem sabe, podemos até abrir um restaurante juntas — dizia Dee, enquanto a agarrava de lado.

June acabou rindo, esmagada pela amiga. Mesmo com dificuldade, tomou o restante do café. 

— Vamos. Temos que trabalhar.

 

 

Bevan, Lado Oeste; 

Quinta-feira; 10h30min

 

 

Afastada da cidade, a casa repousava em silêncio, rodeada por um jardim à inglesa. Uma BMW cruzou a passarela e estacionou ao lado de um Civic prateado.

Do carro desceu uma mulher formosa, trajando salto alto e um casaco de couro. O cabelo comprido tinha ondas negras e seus olhos eram cor de mel. Seus passos foram lentos até a porta de entrada. Parou por um instante, respirou fundo — então abriu a porta.

No andar superior, a luz do sol inundava o quarto através da janela. O cômodo era espaçoso, e a cama, duas vezes maior que o tamanho convencional.

Hyde dormia, coberto por uma manta. Ao seu lado, um filhote de Bull Terrier também repousava. Na soleira da porta, parado no corredor, Conan os observava. Ele negou com a cabeça, tomado por um pensamento recorrente.

— Vai sobrar para mim — murmurou, antes de dar meia-volta e descer as escadas.

— Por que preciso ouvir isso? Hyde é grandinho o suficiente para cuidar de si mesmo. — A voz feminina inundava o andar de baixo.

Conan respirou fundo antes de entrar no cômodo. Avistou Ieri e Joe discutindo, como de costume. Joe estava sentado, alisando as têmporas. O treinador era o mais velho entre eles — e o mais inquieto. 

Ieri, no entanto, dominava a sala de estar com a mesma autoridade de sempre. Tão presunçosa. Tão certa de si, pensou Conan, ao sentar-se no sofá. Como se tivesse captado o pensamento, Ieri cravou os olhos cortantes no assessor.

— E você? Por que não o impediu?

Conan ajustou os óculos no rosto.

— Faço minhas as suas palavras. Ele é, de fato, um adulto. Como, exatamente, eu o impediria? — gesticulou com as mãos. — Ainda bem que consegui chegar a tempo. Ouvi dizer que a polícia apareceu logo depois.

Joe o encarou, e depois voltou-se para Ieri, ainda de pé no centro da sala.

— Isso é inaceitável. Sei que nenhum de nós consegue detê-lo. Ninguém consegue. Ainda assim, você… — apontou para a mulher. Ela o fitava, impassível. — Você tem a obrigação de mantê-lo longe dos negócios daquele homem.

Ieri abriu um sorriso breve, como quem escuta uma piada amarga. Jogou-se em uma poltrona acolchoada e cruzou as pernas.

— Esse não é um ciclo que eu possa quebrar, Joe. Sempre foi assim. Aquele velho provoca, e o Hyde responde.

— O problema... é o Hyde se machucar — disse Conan.

Os dois homens a encaravam. Mas Ieri não parecia se abalar.

— Hyde é um masoquista sem chance de cura — disse secamente, balançando o pé no ar, o salto oscilando. — Não encontro um apartamento decente. Não encontro uma comida que ele aceite — continuava, com raiva contida. — Sabem quantos lugares eu já visitei? Quantos chefs ele dispensou? Acham mesmo que o problema dele é ter descoberto as tramas sujas do pai?

Silêncio. Joe e Conan nada disseram. Os dois pareciam discordar da mulher, mas não estavam dispostos a começar outro argumento. O olhar de Ieri endurecera.

— E ainda me culpam por ter contado — acrescentou, agora com amargura. Murmurou: — Não é como se o Hyde tivesse um coração capaz de ser magoado.

Passos soaram no topo da escada. Hyde surgiu, descalço, com o filhote de Bull Terrier nos braços.

— Vou ficar com o último apartamento que me mostrou. Quero sair dessa casa o quanto antes — falou com simplicidade, sem abrir espaço para réplicas. — Encontre alguém para cozinhar. Qualquer um. Não me importa quem.

E virou-se, sumindo pelo corredor.

Ieri piscou, enrolando uma mecha de cabelo no dedo. Os dois homens balançaram a cabeça em negação.

 

Bevan, Café da Dee; 

Quinta-feira; 18h20min

 

Havia anoitecido, e June ainda estava na cozinha. Usava um avental, os cabelos presos, os olhos atentos à comida. Seguia uma receita no celular, cortando cenouras e batatas sobre a tábua. Estava concentrada demais para ouvir a conversa entre Deena e um rapaz no balcão.

— June? — chamou Deena, encostando a porta da cozinha, o olhar cintilante. — June?!

— O quê? — respondeu, com a faca erguida. Deena levantou os braços num gesto defensivo.

— O que está fazendo? — perguntou, enquanto retirava o próprio avental e alisava a roupa amarrotada.

— Ah… algum tipo de sopa. Vai sair?

Deena se virou, fazendo um movimento travesso com os olhos. June seguiu aquele olhar e, através da porta, avistou o rapaz no balcão.

— Vou rapidinho assistir à homenagem na Travessia. Faz um tempinho que tento sair com esse cara… — sussurrou a última parte. — Quando eu voltar, você pode ir também.

June voltou a cortar as batatas. Cortava em cubos, sem tirar a casca.

— Não precisa se apressar. Não quero ir.

Deena pegava a bolsa no armário, mas virou-se, curiosa.

— Não quer ir à homenagem? Por quê? É tudo tão bonito. Vão até distribuir rosas brancas.

June negou com a cabeça, sem olhá-la.

— Não gosto de multidões. Se quiser, posso fechar sozinha. Aproveite seu encontro.

Deena a abraçou por trás.

— Sério? Sério mesmo?

June assentiu, empurrando-a com suavidade.

— Se divirta.

— Não demore muito aqui. E guarda um pouco da sua sopa pra mim.

— Pode deixar — disse, sem se virar para observar a amiga sair

Ao ficar sozinha, June largou a faca. Passou o antebraço pela testa e puxou uma respiração lenta. O vapor subia da panela no fogo. Lá fora, ouvia-se uma agitação crescente. Muitas pessoas marchavam em direção ao rio. Em memória às vítimas dos assassinatos em série, a maioria das pessoas vestia branco, num gesto simbólico.

Seu olhar atravessou a porta da cozinha e alcançou a vidraça da fachada. As pessoas pareciam se mover num borrão. June apertou os olhos, como se quisesse expulsar algo da mente. Em seguida, voltou ao que fazia.

O sino do café soou.

Não imaginou que fosse um cliente. Pensou em Deena, talvez tivesse esquecido algo. Mas se surpreendeu ao ver uma mulher entrar e se sentar em uma das mesas.

June lavou as mãos, enxugou-as com papel e saiu em direção ao balcão. A mulher falava ao celular, imersa na conversa, embora deslizasse os olhos pelo cardápio.

— O apartamento tem que ficar pronto até o fim do mês. Aquele com vista para o rio — dizia com uma voz levemente estridente. June se aproximou devagar, bloco de anotações na mão. — Também preciso de um chef. Por pelo menos duas semanas, até a outra voltar da Europa. De preferência, mulher. Só um momento, por favor — disse, e June assentiu. — Sim, tem que ser mulher. Ele fica desconfortável. Procura para mim. Preciso para amanhã de manhã… não sei, não importa. Oferece qualquer quantia, alguém vai aparecer. Depois nos falamos.

June observou rapidamente a mulher à sua frente. Ela havia largado o celular e examinava o pequeno cardápio. Era bonita, bem vestida, com um ar de quem tinha dinheiro. O olhar, no entanto… June arriscaria dizer que aquele café não era o tipo de lugar para alguém como ela.

— Para falar a verdade, não queria tomar café tão tarde… — disse sozinha, ainda indecisa diante do cardápio. — Só queria algo quente.

— Também temos chá ou, se preferir, leite quente com chocolate.

— Hum, não seria má ideia. Mas eu queria uma refeição mais apropriada — disse, encarando June. Parecia avaliá-la. — Vocês não servem jantar, servem?

June piscou, pensativa.

— Não, não servimos.

A cliente assentiu. Não se preocupou em disfarçar o movimento de cabeça ao buscar algo nos arredores. Tudo parecia lotado. E, naquele instante, June compreendeu por que ela havia entrado ali.

— Estou realmente com fome — murmurou, fazendo um pequeno bico com a boca. — Mas cansada demais para me levantar. Vou querer o leite quente e a torta salgada.

June começou a anotar, mas parou no meio do gesto. 

— Se não se importar, posso servir algo fora do cardápio. Gosta de sopa?

— Sopa? — repetiu, apoiando o queixo na mão. Piscou para June. — Vai me fazer uma sopa?

— Está quase pronta. Não é receita da casa, mas estou fazendo agora. Se está com fome e quer algo quente, a sopa é uma boa opção.

A mulher assentiu, absorvendo as palavras de June com lentidão.

— Sim… parece que sim. Nesse caso, eu aceito. Acha que vou gostar?

June arqueou as sobrancelhas. Não esperava que a mulher realmente gostasse, mas tinha esperança que ela apreciasse uma boa e quente refeição.

— Espero que sim — disse em resposta e se retirou para a cozinha. 

 

Bevan, Lado Oeste; 

Quinta-feira; 18h30min


 

A casa repousava em silêncio outra vez. Era antiga, decorada com móveis da década passada. Um toque feminino, maternal, existia em cada canto — cortinas floridas e desbotadas, vasos sem flores espalhados pelos cômodos, quadros descascados pendendo das paredes, e uma escuridão familiar escapava pelas frestas.

No andar de cima, o filhote de Bull Terrier brincava sozinho no maior quarto da casa. Hyde o observava, largado na cama. Não sorria, mas sua expressão era menos sombria que o habitual. Levantou-se e caminhou até o banheiro sem blusa e descalço. Acendeu a luz, fixando-se no espelho.

O lado direito do rosto exibia um corte arroxeado. Os olhos azuis cintilavam, fundos e distantes. O maxilar era largo, ossudo; o nariz, levemente arrebitado; os lábios, cheios. 

Abriu a torneira. Deixou a água escorrer pelas mãos antes de levá-las ao rosto. Ainda encarava o próprio reflexo, como se tentasse, com o olhar, perfurar a carne e alcançar o que permanecia enterrado sob ela.

 Hyde fechou os olhos, deu um passo para trás e repousou a nuca contra a parede fria. Respirou fundo, o peito subindo e descendo em cadência lenta. Deixou o corpo ceder, escorregando até cair sentado no chão.

Não demorou muito.

Estava novamente no topo de um edifício escolar — mas, dessa vez, sob a luz do entardecer, que tingia o céu com tons vibrantes de carmesim e dourado.

Ela estava lá. Sentada num banco, os olhos imóveis no céu colorido.

— Voltou mais rápido do que da última vez — comentou.

Hyde permaneceu parado por um instante, como se os pés estivessem ancorados no chão. A respiração seguia calma, mas por dentro uma corrente agitada serpenteava sob a pele.

— Devo ir buscar você pelo braço? — provocou ela, com um leve sorriso.

Por fim, ele baixou o olhar, contemplou os próprios pés, e deu passos lentos, pensativos, até se aproximar. Sentou-se ao lado dela, no rosto uma inquietação contida.

— Qual o problema dessa vez? — perguntou, sem rodeios.

Hyde não respondeu de imediato. A figura dela ao seu lado era tão vívida, tão presente. Era um delírio. Um delírio, mas  ainda assim, seguro. 

— Estou exausto — confessou, por fim.

— E então, por que voltar àquele lugar? — Ela questionou, direta. — Por que lutar?

— Eu também não sei — murmurou ele, encarando o horizonte. — As coisas poderiam ser mais fáceis dentro de mim. Eu queria que fossem.

— Fáceis, é? — repetiu, virando-se para encará-lo. Seus olhos tinham um brilho cansado. — Já se passaram mais de dez anos, não é? Talvez, depois de tanto tempo... não exista mais esse tipo de coisa.

Hyde contemplou o rosto da garota à sua frente.

— Por que é tão má comigo? — perguntou, com um meio-sorriso que escondia um fundo de verdade. A tristeza ainda sombreava o azul dos olhos.

— Eu sou? Me desculpe... — ela pareceu segurar o riso. — Não era minha intenção.

— Tudo bem. Você é a única que pode ser má comigo, Jô.

Um traço de sorriso curvou-lhe os lábios, enquanto sua cabeça encontrava repouso no colo dela. Jô afagou-lhe os cabelos com carinho, os dedos deslizando em gestos lentos.

— Tem algo mais acontecendo? — indagou ela, ainda com a mão sobre a cabeça dele. — Seu pai, ele...

— Haverá uma homenagem na cidade hoje — cortou Hyde, a voz firme.

Jô se calou..

— Muita gente costuma ir. Acha que ela apareceria?

— Conseguiria reconhecê-la no meio da multidão?

— Sim — disse, sem hesitar. — Eu reconheceria você em qualquer lugar.

— As pessoas mudam, Hyde. Ela pode ter mudado.

Ele ergueu o olhar, fixando os olhos nos dela.

— Tudo bem. Não há problema se ela tiver mudado. Ainda seria você — disse, com leveza.

A garota assentiu.

— Sim. Ainda seria eu.

Jô... — chamou, como se cantasse uma prece. — Josephine.

A garota não disse nada por um momento. Continuou o carinho no cabelo dele, até que murmurou:

— Tudo bem. Pode ficar aqui, por enquanto.

Hyde fechou os olhos. Acolheu o gesto em silêncio, como quem se permite esquecer o mundo por instantes.

— Mas, quando o sol se pôr... — prosseguiu ela, com suavidade — você deve voltar. Faça o que tem que fazer.

Algum tempo depois, Hyde foi despertado pelo filhote. O Bull Terrier escalava seu colo, lambendo seu rosto com entusiasmo. Colocando o cachorro no chão, o lutador ficou de pé. Não demorou para sair de casa.

Bevan, Café da Dee; 

Quinta-feira; 18h50min


 

June serviu a sopa no prato mais elegante do café. Posicionou-o no centro da bandeja, decorado com ervas finas e um fio de creme de leite. Cortou o pão baguete, polvilhou parmesão e orégano, e o deixou no forno por alguns minutos, até que dourasse. Serviu-o ainda quente, perfumado.

Acha que vou gostar? A voz da mulher ecoou em sua mente.

Ao observar o empratamento, June apertou os olhos. Está harmônico. Parece apetitoso, concluiu, avaliando com precisão. Havia algo vibrando em seu íntimo — uma inquietação leve. A cliente a intrigava. Sentia-se impelida a agradá-la, como se fosse um desafio pessoal. Não era comum.

June, quase sempre, ignorava o resto do mundo. Mas, desde que começara a cozinhar naquele café, observar a reação das pessoas diante de sua comida despertava algo adormecido. E isso... era raro.

— Aqui está — disse, ao colocar a bandeja sobre a mesa com discrição.

A mulher largou o celular no mesmo instante. Seus olhos brilharam, e um sorriso surgiu ao ver o prato. As sobrancelhas bem desenhadas arquearam-se, como quem se surpreende de forma genuína. Até orgulhosa.

— Aproveite — disse June, já pronta para se afastar.

— Sim, obrigada — respondeu a mulher, mas emendou, quase com pressa: — Espera.

June parou, voltando o corpo com sutileza. Fitou a mulher, os olhos atentos, ainda que cautelosos.

— Algum problema?

— Nenhum. Só... gosto de comer com companhia. Se importaria de sentar comigo?

June não respondeu de imediato. Piscou, pensativa. O convite a desarmava. Não apreciava muito o olhar da mulher — havia algo perscrutador demais, quase íntimo. June era contra intimidade.

— Meu nome é Ieri — continuou a mulher. — E o seu?


 

Bevan, Centro; 

Quinta-feira; 20h30min

 

Havia uma quantidade incomum de pessoas sobre a ponte. Pela primeira vez, a multidão se alastrava de ponta a ponta, ocupando cada vão, cada brecha do guarda-corpo. Barcos com luzes deslizavam pelo rio, projetando reflexos trêmulos na água escura. Para ela, era um espetáculo melancólico, apenas.

Emissoras de TV transmitiam a homenagem. Rosas brancas eram distribuídas, uma a uma, como votos silenciosos. Muitos tiravam fotos, gravavam vídeos, deixavam cartas e pequenas lembranças presas às grades. Cada ação parecia conter algo que não pôde ser dito em vida.

As pessoas transmitiam uma culpa inexistente, June pensava. Ou mesmo June projetava isso em seu coração e nada daquilo era real. 

Mesmo após tantos anos, a memória permanecia intacta. Dolorosa. Presente. A cidade não estava disposta a esquecer — não enquanto o culpado permanecesse impune. Não enquanto as famílias das vítimas continuassem à espera. 

Por um instante, June se perguntou o que fazia ali. Não havia mentido mais cedo: multidões a deixavam desconfortável. Ainda assim, ao fechar o café, seus pés simplesmente se moveram — como se uma curiosidade inconsciente a tivesse conduzido até aquele lugar. A cena diante dela era estranhamente bonita. A homenagem e todo resto. As rosas brancas, os presentes. 

— Este ano parece... diferente — murmurou, erguendo o capuz do casaco. Inspirava devagar, enquanto seus olhos varriam os cartazes que pediam justiça. Uma rosa branca lhe foi entregue, e ela a segurou com cuidado. — É bonita.

O celular tocou dentro da bolsa. June atendeu, apoiando-se no parapeito da ponte. O vento fresco acariciava seu rosto.

— Ainda não estou em casa — avisou, antes mesmo de ouvir a voz do outro lado. Era Deena.

É mesmo? Eu também vou demorar — respondeu a amiga. — Mas liguei por causa da sua mensagem. O que aconteceu? No que exatamente eu não vou acreditar?

June fez uma careta ao se lembrar da mulher que conhecera mais cedo. Ieri.

— Conto depois, em casa. Foi... algo louco. Não sei se caí numa furada ou tirei a sorte grande. Mas consegui um trabalho temporário. Só duas semanas. O dinheiro é bom, vai me ajudar bastante, e não vai atrapalhar no café…

Não teve tempo de concluir.

Uma trombada brusca. A bolsa foi puxada. O celular escapou das mãos e caiu no chão junto com a rosa. Tudo aconteceu rápido demais — não conseguiu ver quem fora. Apenas vislumbrou uma figura se afastando com pressa.

— Droga — murmurou, ajeitando a alça da bolsa e se ajoelhando. — Não acredito que quebrou… — a tela do celular estava trincada. — Que ódio.

Um murmúrio coletivo se espalhou ao redor.

— Olhem o céu! Que coisa linda!

June ergueu o rosto. Levantou-se devagar, os olhos agora fixos no alto.

Drones haviam tomado o espaço aéreo. No céu escuro, uma palavra se formava em luz: Justiça pelos que se foram. Logo depois, a imagem de um pássaro surgiu — suas asas abertas, voando em liberdade.

Apertando o aparelho quebrado, June não permaneceu por mais tempo. Partiu rapidamente. A rosa branca ficou para trás, no chão onde havia caído. Passou alguns minutos apenas, por que não muito longe dali, Hyde também contemplava o céu. Estava parado, imóvel, preso a um lugar que não sabia nomear.

Foi quando caminhou com passos lentos entre as pessoas, o capuz protegendo sua identidade, que avistou no chão uma rosa – e não hesitou em apanhá-la. Estava machucada, mas era ainda uma rosa. 

Segurou-a com cuidado e levou junto de si para casa. 

Continua.

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